Apesar da tão esperada mudança política em Washington, com o presidente democrata Joe Biden agora a salvo na Casa Branca, é improvável que a Europa retome sua dependência irrestrita de seu parceiro transatlântico. Os quatro anos de mandato de Donald Trump foram cheios de tensões e dificuldades entre os EUA e a Europa; na verdade, entre os EUA e seus aliados tradicionais, incluindo o México e o Canadá. No entanto, a tensão no relacionamento EUA-UE precedeu a presidência de Trump.
O estilo pessoal excêntrico do ex-presidente – e muitas vezes retórica e ação contundentes – foi um indicador para a Europa de que o continente precisava urgentemente criar suas próprias alternativas à liderança de Washington. Após a Segunda Guerra Mundial, a formação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em 1949 e o colapso da União Soviética e do Pacto de Varsóvia em 1991, os Estados Unidos tornaram-se o líder inconteste do Ocidente. Eventualmente, foi a única superpotência do mundo. Essas dinâmicas estão agora experimentando um estado de fluxo sem paralelo.
O compromisso dos EUA com o paradigma do pós-guerra esteve oscilando claramente. Consequentemente, as declarações das elites políticas da Europa nos últimos anos sugerem um repensar massivo entre os governos europeus a respeito de sua definição do relacionamento com Washington, uma aliança que governou o mundo por décadas.
Em uma declaração sem precedentes em maio de 2017, a chanceler alemã, Angela Merkel, articulou a mudança massiva na nova perspectiva política da Europa quando disse: “Os tempos em que poderíamos depender completamente dos outros estão, até certo ponto, acabados”. Naquele importante discurso em Munique, o forte líder da Alemanha sinalizou o início do fim da dependência desproporcional dos EUA e da Grã-Bretanha.
O motivo da desconfiança em Washington e Londres era óbvio. Por um lado, o presidente Trump trabalhou para interromper e reverter as políticas tradicionais dos EUA em relação à Europa, incluindo um ataque contundente à integridade e à missão da OTAN, e à utilidade desta para os EUA em termos de segurança global.
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A Grã-Bretanha, por sua vez, não é mais membro da União Europeia e enfrentou o bloco com seus maiores desafios, rejeitando não apenas as políticas fiscais, de migração e outras da UE, mas também a própria noção de “Comunidade Europeia”. Juntamente com o recuo global de Washington, o “Brexit” acabou decisivamente com qualquer ilusão de que um cenário político pós-Segunda Guerra Mundial ainda seja possível.
Atestando essa mudança sísmica na atitude dos principais políticos da Europa, vieram os comentários do presidente francês, Emmanuel Macron, em novembro de 2018, quando pediu um “verdadeiro exército europeu” para proteger o continente de ameaças externas. “Devemos ter uma Europa que se possa defender por si própria, sem depender apenas dos Estados Unidos”, explicou.
Embora haja alguma verdade nas afirmações da mídia de que a UE “suspirou de alívio” quando Biden entrou na Casa Branca, isso não deve ser confundido com as exageradas expectativas europeias de que o novo presidente americano será capaz de restabelecer totalmente os laços UE-EUA com os de antigamente, tampouco deve indicar o desejo europeu de se envolver com os EUA com confiança e entusiasmo sem restrições.
Os dados reais de uma grande pesquisa pan-europeia encomendada pelo Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR, na sigla em inglês) confirmam a atitude fundamentalmente mutante da Europa em relação aos EUA. A pesquisa incluiu mais de 15.000 pessoas em 11 países da UE e foi realizada depois que ficou claro que Biden havia vencido as eleições nos Estados Unidos.
De acordo com a pesquisa, a maioria nos principais países da UE acredita que “o sistema político dos EUA está quebrado”; que “a China será mais poderosa que os EUA dentro de uma década”; e, por fim, que “os europeus não podem contar com os EUA para defendê-los”. Particularmente interessante, a pesquisa encomendada pelo ECFR sinalizou uma mudança geopolítica massiva na visão da Europa em relação às alianças globais, vendo “Berlim, em vez de Washington, como o parceiro mais importante”.
Sobre a questão da confiança, apenas 27% dos entrevistados acreditam que “os americanos são confiáveis” depois que votaram em Trump em 2016. Com a Alemanha atualmente sendo a líder de fato da Europa, as opiniões dos alemães em relação aos americanos são particularmente críticas. Consequentemente, os EUA deveriam realmente notar que 53% dos entrevistados alemães perderam a confiança em um país que já foi um parceiro próximo.
O ECFR escolheu a véspera da posse de Biden para divulgar as conclusões do relatório. Esta foi em si uma mensagem para a nova administração agir com muito cuidado ao tentar reparar os laços quebrados em ambos os lados do Atlântico.
A bola não está mais apenas no campo de Washington. O fato de a maioria dos europeus acreditar na liderança global iminente da China em questão de poucos anos significa que a UE não terá paciência com nenhum ultimato dos EUA para escolher entre Washington e Pequim. Este último não é mais um fenômeno econômico passageiro, mas uma força irreversível no cenário global que não pode ser facilmente descartada, efetivamente “sancionada” ou simplesmente desejada.
Os próximos anos devem ser suficientes para a Europa determinar sua nova identidade, sem a Grã-Bretanha e sem depender da orientação e liderança americanas. Considerando as crescentes crises políticas da Europa, com a Itália sendo o exemplo mais recente, e as consequências econômicas inevitavelmente terríveis da pandemia de covid-19, a jornada da Europa para uma versão renovada de si mesma provavelmente será dolorosa e, como todas as escolhas difíceis, repleta de desafios e muita introspecção. No entanto, ela se redefinirá, apesar da mudança política nos Estados Unidos.
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