É inegável a contribuição da colônia árabe para a formação do Brasil moderno. Em todas as áreas do saber especializado, nas humanidades, em profissões de prestígio (como nas ciências da saúde com ênfase na medicina) e carreiras de Estado temos a presença de brimos e brimas. Popularizando esta representação, a presença de lutadores e praticantes de artes marciais, incluindo o maior lutador profissional da história do Brasil, Euclydes Hattem, o mestre Tatu, temível em todas as modalidades associadas (luta livre brasileira, americana e vale tudo). No topo dessa “representatividade”, instituições icônicas como o Hospital Sírio e Libanês e trajetórias na política profissional de todos os matizes e ideologias. Destas, reconheço que uma parcela relevante é de difícil reivindicação.
O que não temos ou nunca tivemos com todo o seu peso proporcional (ou ainda não temos e vamos construir) é um espaço político específico, próprio e localizado no espectro à esquerda do sistema politico. Sim, há militantes na esquerda de origem árabe, assim como intelectuais e artistas reconhecidos. Ainda assim a relação orgânica com o Levante, a Grande Síria, a Palestina, o Egito, a Mesopotâmia e a Península é totalmente desproporcional ao peso demográfico no país. Pelo menos mais de 80% dos patrícios e patrícias são oriundos do que hoje conformam dois Estados modernos e um território invadido e ocupado majoritariamente por europeus. Líbano, Síria e a Palestina se viram diante de um século XX fruto das lutas interimperiais do século anterior, e também da necessária luta anticolonialista no primeiro momento. Na sequência, um embate anti-imperialista gigantesco e épico. Como toda luta desigual e conflito complexo de longa duração, a formação social concreta é completamente abalada pela violência do invasor modificando as relações sociais na terra ancestral. Isso, obviamente, abala a necessária identificação da diáspora árabe-brasileira.
Quantos somos e porque viemos
A Câmara de Comércio Árabe-Brasileira encomendou uma pesquisa autodeclaratória em julho de 2020 e o número de nacionais que se assumiram como árabes totalizaram 11,6 milhões de pessoas. Confesso que o número é relevante, mas me parecem subestimados. A representação diplomática libanesa através do Consulado Geral em São Paulo estima que a descendência oriunda apenas da terra do cedro totaliza de 8 a 10 milhões de brasileiras e brasileiros. Considerando que a imigração libanesa é no mínimo 70% da descendência árabe, o número de 16 milhões não é nenhum exagero.
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Uma das hipóteses para esse volume migratório seria a propaganda do Brasil durante o II Reinado, com envolvimento direto de Pedro II. O próprio imperador teria escrito ou revisado em árabe (ou quiçá em francês) o material de difusão do país, apontando o gigante sul-americano como um eldorado, terra de oportunidades e receptiva aos “cristãos do Oriente”. Como já dissemos em textos anteriores, a primeira geração de mascates e caixeiros-viajantes encontrou aqui um espaço “perfeito” para o amálgama com as elites locais e a ascensão social. O início da propaganda e dos convênios migratórios data de 1880, após a viagem do monarca tropical entre 1871 e 1876. O trauma do grande massacre de maronitas e outras etnias cristãs sírio-libanesas estava muito presente, datado entre maio e julho de 1860, seguido da invasão “securitária” e garantidora das tropas de Napoleão III.
Já afirmamos em artigos passados a história do Monte Líbano como sendo mais complexa do que o sectarismo evidente e inegável. Fatores intervenientes também incidem sobre as pessoas que deixam suas vilas como a modernização do Império Otomano no período Tanzimat, o reforço das estruturas de poder tradicionais e socialmente absurdas e o conflito de classes que atingiu seu clímax na fundação da República Camponesa de Kersewan (1858-1861). Eis o embate.
A memória das famílias e as tradições na base da oralidade fazem a recordação do terrível e imperdoável pogrom sobre os maronitas e cristãos do Oriente. Mas essa mesma memória não traz a presença dos briosos camponeses liderados por Tanyus Shahin e, menos ainda, a complexidade do jogo de poder sectário somado com a inoperância dos administradores otomanos manipulados por vis diplomatas ocidentais. No Monte Líbano, a presença de instigadores era evidente. Franceses apoiavam os maronitas, ingleses os drusos e a diplomacia do Império russo, aos greco-ortodoxos. Não por acaso esses três impérios formaram um bloco militar na Primeira Guerra Mundial, combateram os Otomanos e articularam a famigerada conspiração Sykes-Picot-Sazanov.
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Podemos listar alguns fatores para a imigração árabe do Monte Líbano e de outras regiões da Grande Síria e todos passam pelo tema do aumento populacional e das condições materiais de vida. Não é o único fator, mas sim a base estrutural: “O fator que se encontra na origem da emigração libanesa, e que ao longo dos anos desempenhou importante papel, é constituído pelo conjunto de necessidades econômicas e materiais decorrentes da relação entre a pequena produtividade agrícola e a alta densidade populacional que desde meados do século XIX caracterizou aquele país. Como se viu acima, o crescimento populacional fez com que a região das montanhas libanesas não pudesse mais prover os meios econômicos para a sobrevivência de sua população, levando a um movimento migratório de aldeões no sentido norte-sul”. (André Gattaz, Do Brasil ao Líbano: história oral de imigrantes, página 25).
A tradição camponesa de produção familiar gerou bases sociais radicalizadas em diversas regiões do planeta. Tomando como exemplo a luta na Palestina, que foi praticamente organizada e dirigida por fellahs (camponeses), organizados em aldeias, com posse coletiva (sem necessariamente um título de propriedade da terra). O longo aprendizado da Revolta de 1834 culmina com a Guerra Popular e Anticolonial de 1936-1939, quando por pouco a massa palestina árabe não derrota os europeus invasores e a prepotência do Mandato Britânico. Já no Monte Líbano, o maior impacto no inconsciente coletivo após a rebelião camponesa foi o reforço do sistema sectário, a instabilidade administrativa dos governantes otomanos e a presença das missões ocidentais melhorando o padrão de vida das elites dominantes dos grupos étnico-religiosos cristãos de Beirute e Trípoli.
Infelizmente, a percepção da primeira leva de imigrantes, a partir de 1880, foi essa. Quanto mais se aproximava da Primeira Guerra Mundial e seu desfecho, as levas constantes de famílias patrícias embarcando na terceira classe de navios percebiam que seu mundo e forma de vida estavam ameaçados. O período otomano do Triunvirato dos Três Pashas materializou esse ápice.
A memória da luta é o motor do pertencimento
Uma das grandes virtudes da primeira geração de árabes que aqui desembarca foi assumir a condição de brasileiro, amalgamar-se em sociedade e não criar estruturas sociais de tipo gueto. Fomos de “mascates a doutores”, mas ainda temos de retomar uma postura de pertencimento ao Mundo Árabe tão vigorosa como nossa pertença ao Brasil e América Latina. Uma das formas é aumentar o grau de conhecimento sobre nossa própria história, alinhando-nos como herdeiros de uma classe camponesa despossuída e, ao lado de irmãs e irmãos da Palestina Ocupada, resistindo sob a tirania do Apartheid Israelense promovido por invasores europeus e aliados com mentalidade de cruzados.
Fazer essa “luta justa” do lado de cá do Atlântico é missão coletiva e honrada. Podemos ajudar, e muito, aos habitantes das terras ancestrais em luta direta contra os invasores imperialistas.
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