Tinha acabado de formar-me em Medicina quando assumi o meu primeiro emprego como médico de família, em janeiro de 2008, numa das unidades básicas de saúde do município de São Paulo -SP. Por ter sido formado numa escola pública de Medicina, a Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA, Marília-SP), fui um dos formandos alistados pelo Exército Brasileiro para prestar o serviço militar obrigatório como oficial-médico. Não fazia uma semana que tinha assumido o meu emprego na periferia de São Paulo quando fui surpreendido por uma correspondência, emitida pelo Exército Brasileiro, convocando-me para me apresentar no quartel de Ibirapuera em cinco dias, pois fui um dos médicos, recém-egressos da faculdade, escolhidos daquele ano para servir na Amazônia.
Mesmo sendo natural do Líbano, eu tinha nacionalidade brasileira desde a minha primeira infância, pois minha mãe é brasileira, nascida no Paraná, e filha de imigrantes libaneses. Assim, não pude escapar de servir a minha segunda pátria, o Brasil, que tão bem me acolheu junto com meus familiares, assim como a tantos membros das mais diversas ascendências. No entanto, trabalhar nas forças armadas e ir para a Amazônia eram duas coisas que estavam totalmente fora dos meus planos. Mas, mesmo assim, encarei esta convocação com um misto de temor e esperança; temor do desconhecido e esperança pois desde a mais tenra idade, no início da minha adolescência no Líbano, eu tinha o sonho de conhecer a selva amazônica. E eis que o sonho estava prestes a realizar-se, ainda que de uma forma extremamente inusitada.
Da civilização à selva
Pedi licença do meu emprego como médico de família e adiei meus planos de residência médica, a fim de encarar o maior desafio na minha vida pessoal e profissional até então: servir como médico militar na maior das florestas tropicais do planeta e uma das sete maravilhas do mundo natural. Arrumei as malas. Levei o estritamente necessário entre objetos pessoais, vestimentas e livros. Livros de medicina, em português e inglês, e livros de literatura, em árabe e português, além de uma cópia em árabe do Nobre Alcorão.
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Numa madrugada escura e fria de fevereiro de 2008, apresentei-me no quartel de Ibirapuera para, na manhã do mesmo dia, embarcar, do aeroporto de Guarulhos, em direção a Manaus-AM. Éramos um grupo de jovens médicos recém-formados, oriundos de várias escolas públicas de medicina, que foram escolhidos para servir no Exército Brasileiro, na selva amazônica, nos mais variados pontos.
Embarcamos numa das companhias aéreas populares. Tudo transcorreu bem até chegarmos próximo a Manaus. Ali, houve fortes turbulências, somente aliviadas com o pouso seguro no aeroporto de Manaus. O encontro das águas negras do Rio Negro com as águas barrentas do Rio Solimões, vista lá das alturas, é uma das mais belas lembranças que guardo deste tenso vôo (o mais tenso de toda a minha vida até hoje).
Do aeroporto de Manaus ao quartel onde seríamos alojados foi um intervalo de tempo de menos de uma hora. Era a primeira vez na minha vida que pisava em solo amazônico. Um sonho alimentado pelo adolescente e mancebo, entre Líbano e Brasil, estava agora a realizar-se. Parecia que estava fora da realidade, que tudo aquilo que eu estava testemunhando e vivendo fosse obra da imaginação.
Aquela Amazônia que tinha visto, lá no Líbano na década de 1990, nos livros árabes de geografia do primeiro grau e no Atlas que meus pais compraram; aquela Amazônia que, já no Brasil em 1998, me deixou entristecido quando comecei a ouvir a respeito de suas queimadas e desmatamento no meu colégio no bairro da Mooca, em São Paulo; aquela Amazônia agora estava ao meu alcance.
Não era mais um sonho pueril, não era mais um idealismo de um mancebo, era agora a realidade de um médico adulto recém-formado. Logo fiquei sabendo que o ponto onde eu iria servir era o município de São Gabriel da Cachoeira, terceiro maior município em extensão territorial de toda a nação brasileira, e localizado no extremo noroeste do país, região de fronteira com os estados vizinhos da Colômbia e Venezuela. Esta região é conhecida como ” A Cabeça do Cachorro”, em referência ao seu formato geográfico no mapa nacional brasileiro. Dados o seu isolamento e a dificuldade de acesso, esta região era considerada, pelo nosso grupo de jovens médicos, como uma das piores, senão a pior de todas, para prestar o serviço militar na bacia amazônica, e talvez em todo o Brasil. Só se chega a São Gabriel da Cachoeira por via aérea ou fluvial, subindo o Rio Negro. Não há estradas que conectem esta cidade com Manaus ou com outras cidades.
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O “Caminho da Eloquência” sobe o Rio Negro
Depois de determinado o destino final de cada um dos jovens médicos vindos das mais diversas regiões do Brasil para servir na Amazônia, ficamos por um tempo ociosos no quartel que serviu de nosso alojamento em Manaus. Enquanto os grupos dos diversos destinos iam embarcando de Manaus, o grupo de São Gabriel da Cachoeira foi ficando. Fomos informados que o Exército não dispunha de meios para transportar-nos ao alto do Rio Negro. Ou seja, a palavra de ordem era: virem-se!
A opção mais em conta era subir o Rio Negro por via fluvial mesmo. O transporte aéreo, mais confortável e rápido (e talvez até mais seguro), era consideravelmente mais caro (a passagem aérea custava algo em torno do triplo do valor da passagem de barco). Foi praticamente consenso do grupo de São Gabriel viajar de barco (éramos em trono de 20 membros). Me lembro que um dos colegas que desitiram de viajar de barco fez isso por temer os acidentes de naufrágio, pois na mesma semana de nossa viagem um barco grande naufragou-se num dos rios amazônicos. Ele acabou indo de avião.
Num dos portos de menor importância, na margem esquerda do Rio Negro, na foz de um igarapé em Manaus, numa tarde de sexta-feira, pouco tempo antes do crepúsculo, numa embarcação chamada lancha rápida, que fazia esta viagem a cada quinze dias apenas, embarcamos rumo a São Gabriel da Cachoeira. Esta embarcação era uma espécie de um ônibus fluvial, com capacidade para cerca de oitenta passageiros sentados. O aspecto geral do porto e do barco não passavam muita confiança, mas o sargento do exército que nos acampanhou em toda a transação garantiu que podíamos confiar. O barco era bem simples. Nada de conforto. O tempo previsto para a viagem era de cerca de 27 horas rio acima, incluindo as duas únicas escalas, nos portos de Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro. A distância aproximada entre origem e destino é de cerca de um mil quilômetros. Ou seja, a embarcação navegava a uma velocidade estimada em cerca de quarenta quilômetros por hora.
No trecho inicial da viagem, enquanto ainda estava claro, ocupei-me com a leitura das páginas do famoso livro na cultura árabe e islâmica “Nahj Al-Balagha”, ou “O Caminho da Eloquência”, de autoria de Ali ibn Abi Taleb, genro e primo do profeta Mohammad (que as bênçãos e a paz de Deus estejam sobre ele) e quarto califa da História Islâmica. Um dos colegas de profissão e companheiro de viagem e de serviço me questionou se eu estava a terminar o livro naquele momento. Respondi que não, que estava no começo do livro ainda. Expliquei-lhe que, em árabe, lemos e escrevemos da direita para a esquerda, ao contrário dos alfabetos latinos (entre eles o português), por isso ele pensou que eu estivesse terminado o livro enquanto, na verdade, eu apenas estava no início da leitura da clássica obra árabe.
Não tardou para escurecer, e após servido o jantar, alguns colegas resolveram subir ao convés da embarcação após pedir permissão ao comandante. Aproveitei a oportunidade e subi junto. Poucas experiências na minha vida me marcaram tanto. Foi esplêndido demais navegar pelo Rio Negro, no coração da maior floresta tropical do mundo. Isolados do mundo. Sem comunicação. Sem nenhuma embarcação por perto. Era um convite irrecusável para a contemplação e meditação. Deixei o exemplar de “O Caminho da Eloquência” no meu assento embaixo, e passei a maior parte da noite contemplando o panorama amazônico através do convés da nossa lancha rápida, ao ar livre. Só fui me recolher para repousar pouco antes das cinco horas da madrugada. Estava dormindo sentado quando senti a embarcação parar para fazer a primeira escala em Barcelos ao irromper da aurora.
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Ainda embevecido com o que havia testemunhado durante a noite, nas primeiras horas da manhã voltei para o convés junto com alguns colegas. Enquanto a maioria deleitava-se com tequila, muçulmano abstêmio que sou, não precisei de nenhuma bebida para embriagar-me. Cada minuto em cima daquela embarcação, no meio da imensidão da selva e do gigante rio, era um afluxo contínuo de deleite e êxtase para a minha alma. Nunca tinha passado por nada tão místico em toda a minha vida.
Meus companheiros de viagem sorviam tequila e eu sorvia a Amazônia até a última gota! Eu era o único árabe e muçulmano daquela embarcação. Senti que ali eu estava a glorificar o Criador como nunca tinha feito até então. A selva, o céu límpido, as águas do Rio Negro, as milhares de ilhas fluviais (entre elas o famoso Arquipélago das Anavilhanas), as esparsas comunidades ribeirinhas, em suma, os ermos amazônicos, para o árabe-brasileiro que vos escreve, foram muito mais inebriantes que qualquer bebida ou entorpecente!
A Chegada
No meio da tarde fizemos a última escala, no porto de Santa Isabel do Rio Negro, antes da chegada ao destino final. Os colegas que, a esta altura da viagem já haviam tornado-se amigos, só desciam do convés para as refeições e para fazer as necessidades no único sanitário que a embarcação tinha. As condições gerais da embarcação eram longe de serem confortáveis. Sendo assim, o convés foi a nossa salvação e o nosso refúgio, durante as intermináveis horas de navegação. Num determinado trecho entre Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro o casco da embarcação empacou num banco de areia. Sob a orientação do comandante, foi preciso que boa parte dos passageiros dirigisse-se à proa para contrabalançar a parte empacada na traseira.
Com a habilidade e perícia do experiente comandante, fomos salvos! A nossa chegada ao porto de São Gabriel da Cachoeira deu-se na primeira metade da noite sábado para domingo, após cerca de 27 a 28 horas de navegação, interrompidas apenas para duas breves escalas nas duas únicas cidades portuárias entre origem e destino. O porto de São Gabriel da Cachoeira marca o último trecho navegável do Rio Negro para grandes embarcações. Um pouco acima deste porto fica a cachoeira que dá alcunha ao município que recebeu o seu nome em referência ao Forte de São Gabriel, construído pelos portugueses na época do Brasil colônia, como fortaleza para defender o Alto Rio Negro de invasores estrangeiros.
A dita cachoeira é o ponto mais estreito em largura de toda a extensão do Rio Negro. Na nossa recepção, no porto, estavam um tenente de carreira da arma de infantaria junto com um graduado, que serviu como motorista do ônibus que nos transportou até o quartel do Quinto Batalhão de Infantaria de Selva (quinto BIS), pertencente à Segunda Brigada de Infantaria de Selva, com sede também em São Gabriel da Cachoeira.
Já na recepção da chegada, no próprio porto ainda, percebemos que o clima ameno de descontração e contemplação, que marcou toda a nossa viagem aventureira rio acima, teria que ser deixado para trás. O jovem tenente recebeu-nos com um ar reservado, frio e pouco hospitaleiro. A abordagem dele para conosco deixou em mim a profunda impressão de que a vida que me esperava na caserna não seria tão fácil assim. No quartel, após a ceia de boas-vindas, composta de pão com manteiga e suco natural de cupuaçu, recolhemo-nos para os aposentos destinados para nós. A turma de jovens médicos, dentistas e farmacêuticos foi dividida em dois alojamentos (cada um com cerca de 10 a 15 membros).
Tive a sorte de ficar no melhor dos dois, que é o alojamento de capitães. Não tinha nada de luxo, o mobiliário deste alojamento consistia de beliches e armários bem simples (cada um dos membros do alojamento tinha direito a apenas um pequeno armário). Mas comparado com as condições precárias do alojamento militar no qual ficamos em Manaus, este alojamento era um luxo só!
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