Debater a Nicarágua sob o governo Ortega-Murillo (desde 2007 até o presente momento) é um desafio constante. Primeiro, porque precisamos separar a política doméstica da projeção latino-americana; segundo, porque é sempre necessário expor o nefasto papel dos Estados Unidos desde o século XIX, mas com ênfase nos cem anos passados; terceiro e, por fim, porque a dimensão geopolítica, pensando em termos de BRICS e segurança no sistema Caribe-Antilhas e Transpacífico, nos obriga a um mergulho específico. Portanto, neste artigo e no próximo dividiremos os temas. Agora, mergulharemos na geopolítica do Sul do mundo.
Estados Unidos e Nicarágua: tirania e intervenções contínuas
Parece um filme repetido, destes que costumam passar na TV aberta brasileira. Mais uma vez, o governo da Nicarágua sofre diversos tipos de pressão vindas do Departamento de Estado e agressividade estadunidense, através da muito contestada Organização dos Estados Americanos (OEA). Apesar de parecida, não se trata de situação semelhante às décadas de 1970 e 1980 do século passado, quando, de forma heroica, o povo nicaraguense se libertou do jugo ditatorial do clã Somoza, tentando construir um governo socialista com experiências democráticas.
A ditadura Somoza começou com outra luta de libertação nacional, a epopeia liderada por Augusto Cesar Sandino, que culminou em mais uma traição. De 1927 a 1933, como extensão das chamadas “guerras bananeiras”, a diplomacia dos canhões dos gringos invadiu o país dos cinco vulcões. Um líder camponês de origem liberal radical, convertido ao magonismo mexicano, comandou um exército de forças irregulares, dando peleia sem trégua aos malditos invasores . O cavalo de Troia do imperialismo se estabeleceu, no país, através da formação da Guarda “Nacional” (melhor seria chamá-la de guarda da United Fruit Co.), sob o comando direto do primeiro dos Somoza, Anastacio Somoza García.
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Em 02 de fevereiro de 1933, os imperialistas se retiram do país, porque simplesmente não conseguem estabelecer domínio territorial, sendo fustigados diuturnamente pelo Exército de Defensor da Soberania Nacional. Um ano depois, a traição em Manágua se consuma, pois Sandino e seu Estado-Maior são assassinados em 21 de fevereiro de 1934. Somoza mata, na covardia, ao convidar os “sandinistas” para uma derradeira reunião de pacificação do país, na tentativa de criar uma força militar regular e permanente (não partidária), junto a um calendário para eleições livres. O plano foi articulado por Cordell Hull, secretário de Estado de Franklin Delano Roosevelt (FDR), sendo que ambos caracterizaram ao tiranete como o “nosso escroque” (na verdade falaram um palavrão misógino que não podemos reproduzir aqui).
Em 1961, a epopeia era retomada, sob a liderança de Carlos Fonseca Amador , estabelecendo a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), então em sua primeira fase . O desenvolvimento da guerra popular contra a tirania sandinista e seus apoiadores estadunidenses atravessou governos do Partido Democrata (Kennedy e Lyndon Johnson), Republicano (Nixon e Gerald Ford) e culminou com a tomada de Managua no governo Jimmy Carter, em 19 de julho de 1979. Durante a guerra civil e as permanentes operações de intervenção externa, tanto Israel como Arábia Saudita apoiaram o Departamento de Estado contra a revolução sandinista. Como se nota, esse padrão é observado em toda a América Latina, em que os sionistas e seus aliados wahhabitas operam como força complementar do imperialismo estadunidense.
Infelizmente, os gringos não interromperam sua escala de agressões. Durante os quase onze anos de governo sandinista, incluindo o processo eleitoral de 04 de novembro de 1984, com presença pluripartidária e tolerância da oposição em plena guerra de agressão externa. Ao sul a Nicarágua faz fronteira com a Costa Rica e, ao norte, com Honduras. Praticamente todo o desenvolvimento econômico do país está na faixa entre a costa do Pacífico, as cadeias de montanhas e vulcões e dois lagos vulcânicos, Managua e Nicarágua. O caribe nicaraguense é composto de territórios ancestrais, com população originária (indígena, nativa) e “garífuna”, população afro-centro americana com tradição quilombola (palenquera), que ocupa a costa atlântica da Nicarágua, Honduras, Guatemala e Belize. Tanto as terras indígenas, de maioria “misquita”, na Mosquitia hondurenha e nicaraguense , como as garifunas com mestiçagem de origem caraíba, aruaque e africana, entendem a presença do governo central como invasor e dividem o país entre Pacífico e Atlântico. Não por acaso, aplicando uma moral maquiavélica “perfeita”, o imperialismo e seus emissários trabalharam essa desavença constitutiva dos direitos ancestrais para as operações da Contra.
A maior das forças contrarrevolucionárias estava em Honduras, alimentada pelas redes de narcotráfico e atendia pela alcunha de RN (Resistência “Nacional”). Já a dissidência comandada por Éden Pastora, o ex-comandante zero, se estabeleceu em 1981, através da Aliança Revolucionária Democrática (ARDE). Ambas as forças tinham apoio do governo Reagan, aplicando a teoria do dominó, incentivando a sabotagem econômica do país. O impasse militar e os erros consecutivos da administração sandinista (já então sob o comando de Daniel Ortega) levam ao esgotamento.
Tudo coincide com a Era Gorbatchev, na antiga União Soviética (1985-1991) e a retirada de fundos de apoio para a política solidária de Cuba, tanto no grande teatro de operações da América Central, como na resistência sul-americana na Colômbia e Chile. Em fevereiro de 1990 é eleita a filha de oligarcas, “doña” Violeta Chamorro (através da UNO) e o acordo de pagamento das dívidas com os Estados Unidos é assinado. A Nicarágua, mais uma vez, fica refém dos malditos gringos e de seus intermediários internos.
Governo Ortega, política doméstica e geopolítica
Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, voltaram a ocupar o poder presidencial a partir das eleições de novembro de 2006. Desde então se candidatam e ganham, apesar das controvérsias e polêmicas de cada pleito. Em novembro de 2021, a dupla Ortega e Murillo vai concorrer novamente, agora sofrendo severas acusações por não permitir a oposição de participar da disputa.
Há um abismo entre o orteguismo do século XXI e o sandinismo histórico (inclusive a própria FSLN se dividiu). “Papito Ortega” habilitou antigos desafetos da Contra e expulsou dirigentes históricos. Existe oposição social e legítima, mas a visibilidade que atingem é inferior ao velho jogo dos gringos. O empresariado nicaraguense – ou a parcela deste que não tem contratos oficiais – opera como toda direita “gusana” do continente, adulando o Departamento de Estado e fazendo pressão a partir de Miami, Los Angeles e Washington D.C. Qualquer semelhança com os “escuálidos” venezuelanos, oligarcas bolivianos de Santa Cruz e narcopolíticos (tanto colombianos como hondurenhos) não é nenhuma coincidência.
O Império tem a petulância de chamar de “Troica da Tirania” os governos da Venezuela, Cuba e Nicarágua, estabelecendo formas de pressão, bloqueio econômico e sequestro de ativos. Nenhum país deveria estar com sua economia isolada do Sistema Internacional, menos ainda ter contas bancárias e depósitos de valor roubados da forma mais cínica imaginável.
Nesse sentido, qualquer alternativa de meios de pagamento para o comércio exterior de commodities primárias e minerais através de mecanismos de compensação que escapem da prepotência dos EUA, é uma vantagem comparativa de valor estratégico. A Nicarágua já sofreu demais sob a projeção de poder imperialista e precisa estar envolvida com territórios econômicos ampliados através do Grupo dos BRICS.
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