No Brasil, e no ocidente como um todo, quando falamos da mulher árabe, ou da mulher muçulmana, vários estereótipos e generalizações são reproduzidos. As mulheres árabes, assim como as mulheres brasileiras, não se encaixam em um único molde. Enquanto as brasileiras são sexualizadas pelos estrangeiros, as árabes e muçulmanas são vistas como subjugadas no ocidente.
Segundo Soraya Misleh, jornalista palestino-brasileira, as pessoas brasileiras têm uma visão completamente errada da mulher árabe, enxergam a opressão delas de forma orientalista, “de um oriente inventado, de povos atrasados, violentos por natureza, que não podem se autocontrolar, que as mulheres são todas submissas de uma forma homogênea.”
“Historicamente existe um protagonismo das mulheres palestinas e das mulheres árabes. E nessa visão errada enxergam como se essas mulheres fossem mais oprimidas do que as que tem aqui, isso não é verdade. E que elas precisam ser salvas, o que também não é verdade”, diz Misleh, que é mestre e doutoranda em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo. “Os estereótipos da mulher árabe são construídos para a dominação, é instrumentalizado para a opressão e favorece a ocupação em toda a região.”
Ao falar sobre esse estereótipo, Muna Omran, cofundadora e pesquisadora sênior do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio (GEPOM), cita o trecho da introdução do “Eu matei Sherazade”, Joumana Haddad:
“embora eu seja a chamada “mulher árabe”, eu — e muitas outras como eu — uso o que tenho vontade de usar, vou aonde tenho vontade de ir e digo o que tenho vontade de dizer;
embora eu seja a chamada “mulher árabe”, eu — e muitas outras como eu — não uso véu, não fui subjugada, não sou analfabeta, nem oprimida e certamente não sou submissa; (…)
e, por fim, embora eu seja a chamada “mulher árabe”, eu — e muitas outras como eu — sou muito parecida com… VOCÊ!”
Muna Omran tem ascendência sírio-libanesa, é carioca, de família muçulmana e professora da pós-graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF), no curso de Estudos da Linguagem. Ela se identifica com a descrição de Joumana Haddad sobre essa outra mulher árabe, que não se encaixa nas crenças ocidentais da chamada “mulher árabe”. Ela não usa véu e nem se preocupa em cobrir os braços, e conta que no Líbano isso é muito comum. “As minhas parentes e primas do Líbano não usam véu e ninguém é menos muçulmana por isso.”
Outra generalização ocidental é de acreditar que todo árabe é muçulmano. “Nem todo árabe é muçulmano. Inclusive o maior país muçulmano, não é um país árabe, é a Indonésia”, diz Muna.
Parte desse estereótipo das mulheres árabes é de que todas são muçulmanas, e dentre as que são, todas se comportam da mesma maneira. Entretanto, há uma diversidade de religiões no mundo árabe e várias vertentes feministas ignoradas pelo ocidente.
Feminismos
Vários estudos dentro do feminismo islâmico, por exemplo, quebram paradigmas sobre a relação entre a religião e a opressão. “O véu acaba sendo símbolo de uma possível opressão e você vai ver ativistas que vão dizer que não é bem isso, como, por exemplo, a Fátima Mernissi, que é marroquina e feminista islâmica. Da perspectiva dela, o véu é uma questão de costume e não apenas religiosa.”, explica Muna, “ao mesmo tempo que outras [mulheres feministas] não vão querer usar o véu e vão romper com essa tradição, considerando o Alcorão como opressor e o véu como um símbolo que reforça essa falta de espaço para a mulher”. Mernisse defende que o que aconteceu com a mulher dentro do Islã, “foi uma manipulação dos textos religiosos”.
A pesquisadora Omran explica que o início do Islã na verdade melhorou a situação das mulheres no mundo árabe. “Na época pré-islâmica as mulheres não tinham uma série de direitos e o Islã legislou muito em favor das mulheres”, conta, “até então, se a mulher ficava viúva, ela não tinha direito a nada de herança do marido, e isso foi legislado pelo Islã. A manipulação disso, posteriormente, pela política, é que colocou a mulher na posição que ela se encontra hoje em alguns países muçulmanos.”
A socióloga Fátima Mernissi (1940-2015) é a autora de Beyond the veil e tem uma tese de que enquanto na cultura ocidental, a mulher é oprimida com base na crença de que são inferiores, o contrário acontece no Islã; supõe-se que as mulheres são poderosas e perigosas, e por isso precisam ser contidas. Ela não é contrária ao uso do véu, mas sim contrária à obrigação do uso quando imposta pelos homens.
O Irã, não é um país árabe, mas é o único Estado Islâmico que obriga que todas as mulheres usem o véu (hijab) em público. Além disso, também não permite que elas entrem em estádios e nem pratique certos esportes, como a natação. Em resposta a isso, a jornalista iraniana Masih Alinejad começou o movimento My Stealthy Freedom, campanha contra o uso compulsório do hijab. Segundo ela, “no momento em que o uso hijab é forçado, você é privada da liberdade de escolha, então, o hijab se torna uma ferramenta de opressão”. Ela explica que além de ser o único país com essa imposição, também condena mulheres a longos anos de prisão por se oporem a essa imposição, dando como exemplo Yasaman Aryani, Monireh Arabshahi, Mojgan Keshavarz, Raheleh Ahmadi e muitas outras mulheres presas por dizerem não ao hijab.
O movimento My Stealthy Freedom começou quando Alinejad publicou uma foto sua correndo com os cabelos soltos nas ruas de Londres e recebeu diversas mensagens de mulheres de dentro do Irã, invejando sua liberdade em poder sentir o vento nos cabelos. Ela então publicou uma foto sua antiga, sem o véu e ainda dentro do Irã. Várias outras fotografias semelhantes de mulheres dentro do país foram compartilhadas, dando início ao movimento.
“As mulheres iranianas estão lutando em sua vida diária por sua dignidade. Desde a revolução, elas têm sido privadas de muitos direitos que até então desfrutavam: Elas são obrigadas a usar lenço na cabeça o tempo todo enquanto em público, seu testemunho no tribunal vale metade do de um homem, não podem viajar ao exterior sem a permissão de seu tutor masculino, sua parte de herança foi substancialmente reduzida e não podem se tornar juízes nem presidentes.”, conta Masih que afirma que as mulheres iranianas estão lutando contra essas restrições há mais de quatro décadas e que estão cada vez mais instruídas e conscientes de seus direitos.
Com o aumento do grau de instrução das mulheres, elas também se tornaram mais conscientes da opressão que sofrem e as ideias feministas ganham mais força. “Embora ainda exista uma reação patriarcal contra o feminismo, mesmo entre certos opositores do regime, o feminismo tem feito progressos consideráveis no Irã. As mulheres estão desafiando cada vez mais o assédio de rua, as leis de herança injustas, a proibição de entrar nos estádios e o assédio sexual”, conta a iraniana.
Na Arábia Saudita, a jornalista da Al Jazeera Ghada Oueiss, conta que o movimento e as campanhas feministas no país se tornaram tão fortes que desencadearam a repressão do regime a essas mulheres. “Essa foi a principal razão pela qual o regime prendeu e torturou as ativistas dos direitos das mulheres Loujain Alhathloul e a acusou de terrorismo. A sociedade influenciada por valores patriarcais e papéis tradicionais de gênero vê nas feministas uma ameaça à sua cultura e até mesmo à sua existência, de modo que ela conspira para atrair os esforços das feministas.”, diz.
Muna Omran lamenta que no Brasil o feminismo sofra tantas tentativas de desgaste na sociedade, com cada vez mais pessoas rejeitando o ativismo, por culpa da extrema direita. “Há uma tentativa de silenciamento à força, colocando em descrédito a pauta a partir de estereótipos da mulher feminista.”. Para ela, a extrema direita de Bolsonaro está tornando o Brasil um país fundamentalista, “sinceramente, eu não vejo tanta diferença no Brasil de hoje com os países muçulmanos fundamentalistas. Não é por acaso que o presidente da República brasileiro tem como herói o príncipe saudita”, Mohammed bin Salman.
Segundo ela, essa marginalização da pauta não acontece no Líbano. Ela diz que lá, entre as mulheres que vivem nas cidades, o feminismo é popular, “as mulheres podem não abraçar a causa, mas reconhecem a importância do ativismo”.
Na Palestina, a consciência política e social é elevada como resultado da ocupação israelense. Segundo Soraya Misleh, elas são metade da população palestina sob ocupação e são a vanguarda na resistência, especialmente as “jovens meninas, por conta da situação insuportável em que vivem”.
Em agosto de 2019 o feminicídio da jovem palestina Israa Ghrayeb desencadeou uma série de protestos. “As mulheres palestinas deram um exemplo para o mundo, saíram em massa nas ruas, exigindo que revogassem um artigo do código penal que amenizava o tal do crime de honra, que na verdade é crime de desonra”, conta Soraya, o movimento conquistou uma vitória e a hashtag “Somos todas Israa” se popularizou no mundo. Segundo ela, entretanto, a imagem de Israa foi muito usada no mundo ocidental para reforçar o estereótipo e caricatura da mulher árabe e, principalmente, das mulheres muçulmanas.
O resultado desse movimento foi a formação de uma organização feminista jovem, a Tal´at, herdeira da tradição de luta pela libertação palestina e contra a opressão machista.
Violências
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal iniciou nesta sexta-feira (5) a ação que discute se em caso de feminicídio, os réus ainda podem usar essa tese da “legítima defesa da honra”. Na semana passada, uma decisão provisória foi tomada afirmando que a alegação é inconstitucional. Em 2020, mais de mil mulheres foram vítimas de feminicídio no país, segundo um monitoramento de veículos de mídia independente chamado “Um vírus e duas guerras”. Em 2019, o Brasil teve uma denúncia de violência contra a mulher a cada cinco minutos. Os dados foram divulgados no último domingo (7) pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Os canais Disque 100 e Ligue 180 registraram 105.671 denúncias.
O gráfico com o indicador de violência contra a mulher do OECD compara o Brasil com alguns outros países árabes.
A jornalista Oueiss, diz que na Árabia Saudita, as mulheres enfrentam discriminação e “estão expostas à violência doméstica sob o sistema de tutela masculina sem nenhum lugar a recorrer quando enfrentam abusos”. Ao menos mil mulheres sauditas fogem do país a cada ano por causa da misoginia, denunciou o sociólogo Mansour al-Askar ao jornal Independent em 2017.
“O sexismo incentiva a violência doméstica e o número de mulheres mortas durante essa violência aumentou em países como o Líbano, que não criminaliza o estupro conjugal e as leis pessoais administradas pelos tribunais religiosos discriminam as mulheres em assuntos como o divórcio e a guarda dos filhos. As mulheres libanesas casadas com homens não libaneses também não podem passar sua cidadania para seus filhos.”, diz Ghada Oueiss, que é de nacionalidade libanesa.
Para Muna Omran, o Líbano tem desafios maiores que o Brasil por ainda não ter tantos canais eficientes de denúncia à violência contra a mulher, mas tem tido avanços. “O Líbano ainda deve muitas explicações à ONU em relação às pautas feministas, mas ele está procurando atender.”.
Desigualdade de gênero
A opressão machista, como destacado pela jornalista palestino-brasileira, Soraya Misleh, “é internacional, ela não é exclusiva de uma cultura ou de uma geografia. Na verdade, não tem a ver com isso, é uma questão política.”.
Ghada Oueiss, que foi vítima de diversos ataques por ser uma jornalista mulher, diz que “As sociedades árabes sofrem de forte misoginia e os direitos das mulheres nos países da região, em sua maioria árabes, estão entre os piores do mundo.”
“Não somente as mulheres não têm direitos iguais aos homens, mas também os homens procuram controlar a vida das mulheres árabes desde o nascimento até a morte. Na Arábia Saudita, o Estado trata as mulheres como menores legais permanentes. O regime tem feito muito pouco para acabar com o sistema, que é um impedimento aos direitos das mulheres no país”, diz ela.
Masih Alinejad também concorda que o Oriente Médio sofre de “problemas crônicos de igualdade de gênero e o Irã indiscutivelmente tem uma das piores estruturas judiciais e institucionais que impedem as mulheres de atingir seu pleno potencial.”
“O sexismo está no DNA da República Islâmica do Irã. Como já disse tantas vezes, o regime escreveu sua ideologia sobre os corpos das mulheres e trata as mulheres como cidadãs de segunda classe.”
Índice de paridade de gênero
Índice de desigualdade de Gênero da ONU, que considera a Soma dos dados de mortalidade materna, gravidez na adolescência, percentual de assentos ocupados por mulheres no Parlamento e participação na força de trabalho
Percentual de participação de mulheres no Parlamento
Casamento infantil
A pesquisadora Muna Omran conta que durante uma visita ao Brasil em 2019, a presidente da Comissão Nacional para as Mulheres Libanesas, Claudine Aoun Roukoz, que também é filha do presidente do Líbano, contou que um dos desafios do país e da região é combater o casamento infantil. “O casamento infantil acontece para resolver um problema de ordem econômica e há uma dificuldade do estado para combater isso”, diz Omran.
A pauta também é uma preocupação brasileira, os dados mostram que no mundo, doze milhões de meninas se casam antes dos dezoito anos todos os anos. Dados de 2017, do Girls Not Brides mostram que o Brasil é o quinto maior país, em números absolutos de mulheres casadas ou em união antes dos dezoito anos, são dois milhões e 226 mil.
Dados comparativos do Brasil e países do Oriente Médio em relação a porcentagem de meninas casadas antes dos 18 anos e antes dos 15 anos de idade.
A palestina Soraya Misleh lembra que muitas vezes imagens são compartilhadas na internet com notícias falsas sobre casamento infantil no Oriente Médio. No ano passado, imagens de uma tradição palestina foram distorcidas de seu contexto e usadas para um boato de casamento infantil no Irã, com garotas menores de dez anos. A foto, na verdade, era de crianças acompanhando os noivos em casamentos, como as daminhas de honra.