Não há dúvidas de que o Direito Internacional tornou-se um elefante desajeitado e pesado empurrado para lá e pra cá enquanto avança no mundo a tomada de terras, soberania, direitos e riquezas alheias. Armas e tratores passam por cima da retórica ocidental da democracia e direitos humanos que convive com ocupações e genocídios, justificando e normalizando as relações violentas entre os países e internas às sociedades incapazes de promover justiça.
No entanto, esse elefante incomoda muita gente. Nos últimos anos, especialmente sob o neoliberalismo explícito do governo Trump, nos Estados Unidos, as instâncias internacionais baseadas em acordos e tratados entre as nações foram atacadas e asfixiadas a quase não resistir, como foi a saída do país – o que significa também limitar recursos e efetividade nas ações, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, e das deliberações do Pacto Global para a Migração, da adesão à Unesco e o fim da ajuda à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (Unrwa, na sigla usual em inglês), que depende totalmente das contribuições voluntárias dos países. Na medida em que invoca direitos e deveres dos países, até a Organização Mundial da Saúde, em plena pandemia, é alvo de ataques e desqualificações – e o Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro é o exemplo recente mais explícito.
Filho dos acordos mundiais, porém enjeitado por grandes potências, o Tribunal Penal Internacional (TPI) ou Corte de Haia está no centro da encruzilhada que o Direito Internacional atravessa, sob cerco pesado que empurra o elefante para fora do caminho.
Mais de 120 países ratificaram o estatuto de fundação do tribunal, o Estatuto de Roma, desde seu lançamento, em 1998. Mas entre os que não ratificaram estão três dos cinco membros permanentes do conselho de segurança da ONU, que têm o poder de vetar encaminhamentos da ONU ao tribunal: Estados Unidos, Rússia e China. Israel aderiu ao inicialmente ao estatuto, mas também não o ratificou.
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As ameaças e amarras impostas às instâncias baseadas de alguma forma nos tratados do Direito Internacional demonstram também a dimensão dos desequilíbrios e abusos entre as nações e as contradições entre a retórica acuada da justiça e o exercício arrogante do poder econômico e militar nas decisões políticas. Esta é uma noção clara da jurista gambiana de 60 anos que desde a eleição no final de 2011 comanda a promotoria do TPI, Fatou Bensouda. Neste mês de março, dedicado à luta das mulheres, a procuradora se destaca pela coragem com que empresta sua figura a um enfrentamento que desafia a lógica conformista das relações internacionais quando se trata de aplicar a justiça.
Por duas decisões recentes, uma de investigar crimes de guerra e contra humanidade no Afeganistão, envolvendo os Estados Unidos, outra de reconhecer a jurisdição do Tribunal, após cinco anos de investigações, para julgar crimes dessa natureza nos territórios palestinos ocupados, envolvendo Israel, Fatou tornou-se alvo direto de sanções e uma campanha de desqualificação da parte dos dois governos.
Os Estados Unidos, ainda sob o governo de Donald Trump, retirou vistos a todos os funcionários do tribunal e suas famílias. A estas pressões, a promotora reagiu apontando a singularidade da situação:
“Estamos num momento decisivo na história da justiça penal internacional.” – disse Fatou Bensouda ao encontrar-se, no dia 22 de fevereiro, em Bruxelas, com os ministros das Relações Exteriores na União Europeia. “Ou mantemo-nos firmes com convicção na defesa do Estatuto de Roma e garantimos a sucesso de longo prazo para o benefício da humanidade, ou permitiremos que os caprichos e ventos da política da época destruam o progresso conquistado com dificuldade em direção a uma maior responsabilização por crimes de atrocidade. ”
High interest, attendance and support in #UN Ambassadors meeting with @IntlCrimCourt Prosecutor and @PASP73. #ICC OTP briefed on important recent achievements and successes, which underscore the Court’s resilience and commitment to bring #justice to victims of atrocity crimes. pic.twitter.com/Tg5mUxIHoL
— Liechtenstein UN (@LiechtensteinUN) February 25, 2021
Desde o dia 5 de fevereiro, quando o TPI aprovou que sua jurisdição se estende aos territórios ocupados por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, que incluem Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza, as tensões aumentaram em torno da corte. A provavel responsabilização de autoridades e militares israelenses pelos crimes contra o povo palestino está no foco das atenções e ataques a Bensouda. Ela iniciou uma investigação preliminar em janeiro de 2015 sobre as denúncias do massacre de Gaza em 2014. A operação israelenses deixou 2.251 mortes, a maioria civil do lado palestino, entre essas, 550 crianças e 250 mulheres. Israel perdeu 74 vidas nos ataques, a maioria soldados. Em 2018, novas violências contra paletisnos foram cometidas durante a Marcha do Retorno na região da fronteira de Gaza com Israel. Estes crimes vão sendo progressivamente abafados nos acordos de normalização dos Estados árabes com o Estado ocupante de Israel.
Em meio ao cerco, Fatou Bensouda anunc que deverá encerrar sua trajetória à frente da promotoria de Haia ainda este ano, preferindo afastar-se e devendo ser substituída pelo advogado britânico Karim Khan em junho próximo. No entanto, sua retirada não significou abandono dos processos. Pelo contrário, no último dia 3 de março, ela deu início à investigação oficial sobre as denúncias de crimes de guerra nos territórios palestinos, deixando o caminho aberto para o trabalho do sucessor. Com isso, ela passou a ganhar, além das sanções, acusações de antissemitismo, o principal argumento do Estado de Israel para calar toda crítica e possibilidade de julgamento aos crimes da ocupação.
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Ainda que se especule que o novo presidente dos EUA poderá suspender as sanções aos vistos do pessoal do TPI, declarações recentes da diplomacia americana demonstram que o cerco à corte deverá continuar.
O Porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Ned Price, reafirmou que os EUA se opõem “firmemente” à abertura da investigação, consideram que o tribunal “não é competente” e os palestinos “não são um Estado soberano”.
No dia seguinte à decisão do TPI, Price disse aos jornalistas: “Estamos desiludidos. Continuaremos a apoiar Israel e a sua segurança, opondo-nos sobretudo as ações que visem injustamente o país”.
Suportar as pressões de críticos poderosos e com ascendência sobre países por meio de ameaças de natureza financeira e sanções, não é o único atributo da promotora-chefe do TPI. Ela merece ser reconhecida também por evidenciar que a violência contra mulheres nas situações de conflito integra o âmago dos crimes contra a humanidade. Hoje, de acordo com site Justificando, o Estatuto do TPI classifica a agressão sexual como crime de guerra quando há um ataque generalizado e sistemático contra uma população civil; como crime de tortura, quando é feito a fim de obter uma confissão da vitima; ou como ato de genocídio, quando busca evitar os nascimentos de um certo grupo, com esterilizações, mutilações ou gravidez forçada. E observar a situação das mulheres nos casos investigados é uma orientação de Fatou a seus investigadores.
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Logo ao assumir o TPI, a promotora reafirou seu compromisso com a agenda de gênero, ao afirmar que integraria essa perspectiva em todas as áreas de trabalho da procuradoria, reforçando a atenção à questões da violência sexual. Para isso, nomeou a neozelandeza Brigid Inder, estrategista e defensora dos direitos das mulheres, assessora especial de gênero da procuradoria do TPI.
Fatou Bensouda sempre se remete ao fato de que a ausência de atenção às mulheres nos julgamentos foi o que, desde jovem, levou-a a buscar uma carreira nos tribunais. “Eu não parecia sentir que elas (as mulheres) estavam recebendo o abraço protetor da lei. Para mim, essa é uma das coisas que informaram minha decisão de dizer, ‘Isso é o que eu quero fazer’ ”, declarou ela ao site inglês The Guardian.
De certa forma, além do enfrentamento nas altas esferas do Direito Internacional Fatou ganha a empatia do público por associar as tarefas da corte à situação de pessoas anônimas, como foco nas mulheres e crianças alcançadas e martirizadas nos conflitos e que, sem suas histórias individuais valorizadas e confrontadas com a do perpetrador, são apenas estatísticas à frente dos juízes. Por trás dos números, o Direito Internacional esconde suas feridas.
Nessas frases claras e compreensíveis, Fatou Bensouda traduz dramas e pedidos de socorro que se escondem nas gavetas travadas da justiça internacional: “Devemos continuar a trabalhar pelas vítimas de crimes atrozes que olham para o Tribunal como um último farol de esperança para a justiça”.
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