Wael inseriu a chave na fechadura enferrujada e girou em sentido horário até sentir o mecanismo encaixar-se. Em seguida, abriu a porta, atirou longe seus sapatos e deitou-se estirado em seu sofá.
De repente, todo o edifício chacoalhou com o som de uma pequena explosão próxima – ou assim pensou. Levantou-se e saiu à varanda. Sentiu a brisa leve de agosto e respirou profundamente os ares do Mar Mediterrâneo.
Então tudo explodiu.
Quase 3.000 toneladas de nitrato de amônio simplesmente explodiram no porto de Beirute. O prédio de Wael sacudiu precariamente. Uma nuvem de poeira bateu contra o rosto do jovem de 30 anos de idade e o atirou para trás.
Dentre o caos de não saber o que causou a explosão, ou se haveria alguma outra, Wael agiu por impulso. Agarrou sua máscara e correu às ruas de Geitawi, distrito devastado no leste de Beirute.
Seis meses depois, Wael, que pediu para ser identificado apenas por seu primeiro nome, soa surpreendentemente calmo ao relatar os eventos de 4 de agosto. Com a voz firme e a entonação consistente, chega até mesmo a rir uma ou outra vez, ao recordar momentos tragicômicos em meio à destruição.
Embora externamente sereno, o tom equilibrado de Wael oculta suas verdadeiras emoções. Assim como em muitos residentes de Beirute, as feridas sofridas por Wael fecharam-se desde o verão, mas as cicatrizes mentais ainda prevalecem.
“Nos primeiros dois meses após a explosão, não parei um minuto de trabalhar como voluntário”, afirma Wael com certa timidez, em meio aos ruídos de uma ligação por Whatsapp, de sua casa em Beirute.
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“Havia sempre algo a fazer e ajudou realmente a tirar minha cabeça da explosão, da situação econômica, da pandemia e todo o resto que aconteceu no Líbano, no último ano”.
“Mas pouco a pouco, conforme havia cada vez menos coisas para reconstruir, comecei a ter uma sensação estranha de decepção. Esperava mais e mais de meus amigos e acabei por afastá-los. Também fiquei agitado emocionalmente pela falta de perspectiva futura para nós no Líbano. Se pudesse cravar, diria que fiquei deprimido”, relatou.
Wael declarou ter começado a vivenciar sinais de depressão nos meses que sucederam a explosão de Beirute, mas que o desastre foi meramente um gatilho e não raiz dos sintomas.
O MEMO conversou com cinco psicólogos que alertaram que a escalada das doenças mentais no Líbano não deve-se somente à explosão, mas também a outros fatores, como o colapso econômico e a pandemia de coronavírus.
Mia Atoui, cofundadora e presidente da Embrace, instituição de assistência à saúde mental, afirmou: “Em todos os lugares, a população do Líbano relata hoje sintomas de apatia que podem beirar a depressão clínica, mas não podemos diagnosticar ainda ao certo”.
Estudos preliminares, reiterou Atoui, demonstram rápido aumento nos sintomas de depressão e ansiedade, além de outros problemas mentais, após a explosão. Contudo, pesquisas de alguns atrás já apontavam tais problemas da saúde mental como bastante preeminentes no Líbano.
A neuropsiquiatra Natali Farran sugere que o início do recente pico pode remeter à recente crise econômica, meses antes da explosão, contudo, acelerado pela catástrofe.
Segundo a médica, sintomas de apatia e depressão começaram a espalhar-se entre a população libanesa pouco antes de protestos contra o governo que tomaram as ruas do país, em outubro de 2019, cujo estopim foi uma nova tarifa sobre aplicativos de mensagem, mas que atingiu pautas maiores contra a elite política e a situação socioeconômica.
Prosseguiu:
Sempre houve uma epidemia de depressão no Líbano, mas tornou-se cada vez mais evidente quando começaram os protestos, em outubro de 2019.
“No início do colapso econômico e na época das manifestações, as pessoas não estavam ainda nos estágios clínico e patológicos da depressão, mas foram se aproximando pouco a pouco. Após a explosão, tenho certeza de que chegaram neste ponto”.
“Além disso, muitos indivíduos com outras condições de saúde mental sofreram recaídas desde a explosão e a escassez de medicação psiquiátrica e recursos mínimos para intervenção exacerbou o problema”, enfatizou Farran.
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A Linha Direta Nacional de Apoio Emocional e Combate ao Suicídio do Líbano, adminsitrada pela Embrace, recebeu quase o triplo de telefonemas em 2020 do que no ano anterior, aumento de 2.200 chamadas em 2019 para 6.100 no ano marcado pela pandemia.
Grande parte desse aumento é atribuída à crise econômica no Líbano, agravada pelos sucessivos lockdowns necessários para conter o coronavírus e marcada por imolações públicas e tentativas de suicídio.
Não obstante, a psicóloga clínica Sarah Tannouri, que trabalhou na rede de resposta emergencial da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), alega que os sintomas de doenças mentais “explodiram logo após o desastre”.
Nos dias imediatos à explosão em Beirute, Tannouri teve de lidar com incidentes de raiva descontrolada, apatia, falta de sono, falta de interesse, torpor emocional, perda de memória recente, agitação, agorafobia e incontinência urinária, inclusive em crianças.
Quatro meses após a explosão, em dezembro de 2020, a população sofria exponencialmente de depressão e ansiedade generalizada, explicou a psicóloga, ao acrescentar que a recorrência do trauma tornou-se frequente à população, sob gatilhos cotidianos, como trovões ou ruídos de avião.
Lana, de 25 anos, afirmou que, apesar de fazer terapia antes da explosão, já não se sentia capaz de conversar sobre seus problemas.
Declarou:
Em Beirute, não quero contar minha história porque todo mundo tem uma história pior
“Tenho uma piada que costumo dizer agora: ‘Mesmo meu terapeuta precisa de terapia!’. Afinal, o psicólogo que me atendia antes da explosão vive no mesmo bairro que eu, onde tudo foi pelos ares”.
A linha direta da Embrace pode ser contactada pelo número 1564 (apenas Líbano)
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