Recentes declarações de oficiais americanos sugerem que Washington manterá sua política linha dura contra a Venezuela. O governo do presidente democrata Joe Biden, porém, precisa urgentemente rever sua abordagem.
Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, comentou em 3 de fevereiro que “certamente não espera que esta gestão engaje-se diretamente com Maduro”, em referência ao presidente venezuelano. Em outras palavras, segundo Price, é de esperar que Biden insista na estratégia de seu predecessor, Donald Trump, em ignorar completamente o governo em Caracas.
Além disso, a equipe de Biden deverá preservar os canais de diálogo com Juan Guaidó, líder da oposição venezuelana, autoproclamado presidente sem poderes reais. Em 2 de março, Guaidó conversou com o novo Secretário de Estado dos Estados Unidos Antony Blinken. Trata-se do contato de mais alto nível entre Washington e Guaidó, cada vez mais desacreditado e isolado, desde a posse da Biden em janeiro último. Ambos consentiram sobre a “importância do retorno da democracia à Venezuela via eleições livres e justas”.
Seria razoável, portanto, concluir que não haverá qualquer mudança significativa na política externa dos Estados Unidos em relação à Venezuela, durante o mandato de Biden. Contudo, tal conclusão seria apressada, pois deixa de observar uma série de mudanças ocorridas dentro e ao redor da Venezuela nos anos recentes, sobretudo após a escalada das sanções americanas contra o país sul-americano, em 2015, 2017, 2019 e enfim fevereiro do último ano.
A agenda de Washington na Venezuela fracassou e nenhuma sanção adicional deverá mudar o cenário político. Não apenas o governo de Nicolás Maduro, seu partido governista e aliados regionais e internacionais mostraram-se resolutos e capazes de resistir à imensa pressão política e econômica, mas aliados de Washington já não mais demonstram consenso ou união, seja sobre a pauta venezuelana ou qualquer outra.
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Guaidó entrou em cena em 2015 e foi elevado de político pouco conhecido a herói antissocialista designado por Washington, incumbido de reivindicar seu país em nome de uma democracia liberal. Sua legitimidade resultou amplamente da vitória da oposição venezuelana nas eleições daquele ano.
Desde então, não obstante, esta legitimidade pouco a pouco erodiu-se. Ao investir desproporcionalmente na habilidade de Washington de depor Maduro através de duras sanções, deslegitimação diplomática e pressão política, Guaidó paulatinamente abandonou sua abordagem inicial focada na Venezuela. Desta forma, deslegitimou a si próprio, em lugar de Maduro, mesmo entre apoiadores. Frustrada com prioridades autocentradas e ciente de que a atual estratégia de Guaidó não levará a qualquer mudança substancial, a oposição venezuelana desintegrou-se em pequenas facções.
Em janeiro de 2020, outro legislador da oposição, Luis Parra, tentou assumir o cargo de Presidente do Parlamento. A manobra levou ao bloqueio do acesso de Guaidó ao Palácio Federal Legislativo, dado que reivindicava a mesma posição. Imagens caóticas do episódio reverberaram em todo o mundo.
As recentes eleições legislativas da Venezuela, em dezembro último, refletiram a enorme cisão entre a oposição do país. Alguns partidos aderiram rigorosamente ao boicote eleitoral, enquanto outros participaram do pleito. O resultado foi uma vitória decisiva do Partido Socialista Unido, liderado por Maduro, que conquistou assim o controle absoluto das instituições nacionais. A agência de notícias France24 capturou bem a nova realidade com a manchete: “Novo Parlamento da Venezuela deixa de fora Guaidó, aliado ocidental”.
Na verdade, o telefonema de Blinken a Guaidó, cujo momento apropriado passou, dificilmente terá grandes consequências em campo. Sua utilidade reside no fato de que Washington não possui nenhum outro “nome forte” em Caracas. Sobretudo, o governo americano investiu enormes recursos financeiros e políticos em Guaidó, que o permitiram conclamar o título de presidente interino da Venezuela. Portanto, desinvestir absolutamente de Guaidó também representa uma manobra de risco.
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Não obstante, vale notar a mudança na linguagem utilizada no discurso político americano, após a conversa entre Blinken e Guaidó, ao reiterar a “importância do retorno da democracia à Venezuela via eleições livres e justas”. A distinção talvez seja ainda sutil, mas significativa; não há mais uma demanda decisiva de remover Maduro do poder.
Parece que a distância entre Venezuela e Estados Unidos pouco a pouco se encurta. Em agosto de 2019, o jornal The Washington Post reportou que negociadores venezuelanos, em nome do governo de Maduro, apresentaram uma “oferta surpreendente”, durante conversas mediadas com a oposição, realizadas na Noruega, dois meses antes. Caracas assinalou, na ocasião, sua “disposição em conduzir tal pleito dentro de nove a doze meses”, ao referir-se aos apelos por novas eleições presidenciais.
Desta forma, cabe a Washington engajar-se com Caracas em favor de um diálogo político civil, longe de ameaças e sanções, particularmente por duas razões. Apesar do argumento de que a maioria dos venezuelanos residentes nos Estados Unidos apoiam políticas rigorosas contra Maduro, 46% deles também “apoiam a remoção de sanções de petróleo, caso Caracas concorde em realizar eleições livres e justas, reconhecidas internacionalmente”, segundo pesquisa de opinião publicada recentemente pelo think tank de direita Atlantic Council.
Além disso, a abordagem fútil de sanções americanas contra a Venezuela provou-se não apenas imensamente prejudicial ao povo venezuelano, mas também aos próprios interesses regionais de Washington. A obstinação dos Estados Unidos permitiu a adversários globais, sobretudo Rússia e China, a materializar interesses estratégicos e econômicos na América do Sul.
Em seu relatório de 2019, o Centro de Pesquisa de Política Econômica (CEPR) revelou que, entre 2017 e 2018, as sanções lideradas por Washington contra a Venezuela “infligiram – e continuam a fazê-lo, cada vez mais – danos bastante graves à saúde e vida humana, incluindo mais de 40 mil mortes”.
Não há justificativa política, lógica ou mesmo moral para a calamidade humanitária em curso na Venezuela. Os Estados Unidos devem dar fim à punição coletiva contra o povo venezuelano.
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