Edgard Raoul Gomes Neto, advogado especialista em direitos humanos quis sentir na pele o que de fato refugiados passam em suas travessias à procura de uma vida digna, sem guerra e perseguições. E decidiu juntar-se a eles.
De acordo com o último relatório divulgado pela Acnur, em 2020 o número de pessoas deslocadas à força ultrapassou os 80 milhões, tendo a Síria no topo da lista devido a guerra que já dura há mais de 10 anos.
Foram anos de idas e vindas com refugiados de diversas partes do mundo, vivendo todo tipo de situação. Em entrevista ao Memo, Edgar revela como isso aconteceu e como dentro desta situação nasceu um projeto na Palestina que mudou sua vida e a vida de diversos palestinos.
Qual foi sua maior motivação para largar tudo e viver como um refugiado?
A minha motivação principal decorreu da seguinte reflexão: Eu Edgar, sou nascido e crescido na cidade de São Paulo, venho de duas famílias tradicionais e privilegiadas, sendo que tem pessoas simplesmente passando fome, sem ter onde morar e morrendo nos mares, Egeu e Mediterrâneo, entre outras localidades do mundo. Então resolvi deixar tudo pra trás, justamente para entender, na perspectiva dos refugiados, o que eles, de fato, passam.
Minha motivação foi essa, buscar entender essa gramática dos direitos humanos que a gente defende com tanta veemência, na prática. E não tão somente na academia, nas universidades.
Quanto tempo que você ficou viajando?
Em 2014 eu saí do Brasil para os Estados Unidos, lá as organizações internacionais humanitárias não aprovaram meu projeto (de me misturar com os refugiados) e disseram que, se eu fosse pro Oriente Médio, eu morreria em dois dias. Não desisti e, em 2015, fui para a Turquia e de lá para a Alemanha, como se fosse um refugiado. Então, é a primeira perna da minha experiência. Fui com meu dinheiro. E com a minha cara, ninguém me financiou, eu não representava ninguém, eu era um civil, tentando entender a realidade dos refugiados da Síria, entre pessoas de outras nacionalidades que também viajavam nessa rota.
Em 2016 eu vivi a mesma coisa no Oriente Médio, estive entre Síria, Líbano, Jordânia, estive também na Cisjordânia, na Palestina e eu fiquei girando esses quatro territórios. Em 2017 fiz a rota dos refugiados com os europeus. Sai de Berlim e a ideia era andar até a Alepo, na Síria. Consegui chegar até a Turquia, a gente não conseguiu cruzar a Turquia.
Então, 2015, 2016 e 2017, fiquei em campo o tempo inteiro e, em 2018, me transferi para o México para fazer essa trajetória, porque na América a gente tem o mesmo fluxo migratório. Das pessoas que saem da América do Sul e da América Central e param no México para chegar nos Estados Unidos e no Canadá. Em 2019 e 2020, eu fiquei no Brasil.
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Em linhas gerais qual era a situação dos refugiados com os quais você conviveu?
Os que estavam saindo da Grécia, indo para Alemanha, eram refugiados que tinham dinheiro e que faziam parte de uma elite de pessoas privilegiadas da Síria que tinham condições financeiras para chegar até a Alemanha. Na Jordânia e no Líbano eram refugiados não tão letrados, como esses outros refugiados que foram pra Europa. Tinham uma condição financeira pior e por isso que tiveram que ir para Jordânia e para o Líbano, porque eles não tinham dinheiro pra ir pra Europa.
E o seu projeto continua?
O projeto de imersão já foi concluído, já tenho os elementos fundamentais para poder propor projetos pensando em mudanças.
Aqui no Brasil estou tentando apoiar a operação acolhida e a integração dos venezuelanos em conjunto com o José Egas, que é o representante nacional da Acnur no Brasil. Como tenho muito acesso à iniciativa privada, estou propondo projetos que estão totalmente relacionados ao tema refúgio. Estamos lançando esse ano, por exemplo, um projeto para, além de acolher os refugiados no Brasil, dar-lhes uma propriedade. Eles vão deixar de ser refugiados para se tornarem proprietários de bens e imóveis aqui no Brasil.
Como que você foi recebido pelos refugiados? Houve algum problema?
Depende das circunstâncias. Por exemplo, quando estive em Atenas, na fronteira da Grécia com a Macedônia e só tinha afegãos, eles sabiam que eu não era um refugiado, eles acharam que eu era Informante, espião. E aí, eles me receberam super mal. Tive que ligar para um conhecido afegão, com quem eu já tinha caminhado uma época e ele me traduziu e acalmou os afegãos. Daí, pude viajar com eles.
Em alguns momentos foi bem tenso, porque eles achavam que eu era um espião ou alguém que estava ali pra fazer-lhes algum mal. Mas depois que eu conquistava a confiança deles, eles gostavam da ideia de eu estar ali pra entender o que de fato estava acontecendo nessa trajetória. Assim, depois eu poderia falar para o mundo inteiro o que estava acontecendo, sobretudo dentro da Europa, pois as pessoas acham que o problema de direitos humanos está somente na Síria, na Turquia, na Jordânia, no Líbano, na Palestina, e aí os países ocidentais se isentam de qualquer responsabilidade.
O que mais te marcou neste projeto?
Foi ter conhecido hoje um dos meus melhores e grandes amigos, o palestino Mohammed AbuJayyab, que foi a principal figura dentro da minha trajetória, que me fez resignificar simplesmente tudo que eu sou e tudo que eu era. E hoje, por causa disso, nós somos grandes amigos e nós propomos projetos juntos.
Mohammed é de Gaza, a família é de uma vila entre Gaza e Jerusalém. Então ele cresceu num campo de refugiados em Gaza. Essa união entre Edgard e Mohammed para tentar fazer o bem é o maior ativo que eu tenho de toda essa trajetória, o grande ganho da minha vida.
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Como foi viver na Palestina ?
A Cisjordânia está dividida entre áreas A, B e C. Testemunhei o avanço de Israel em relação às áreas C, B e agora também A, criando os checkpoints e também os assentamentos irregulares. Vivi em Ramallah e Belém, visitei praticamente todas as outras cidades da Cisjordânia. Digo que a Cisjordânia se transformou em um grande campo de refugiados, pois existe restrição do acesso a água, de alimentos. O mercado de Ramallah por exemplo é abastecido pela produção dos assentamentos.
Os campos de refugiados que existem, desde o início da ocupação, acabam vivendo os mesmos revezes de qualquer campo transitório. A questão na Palestina é que os campos que deveriam ser transitórios se tornaram vilas e cidades. Não há transitoriedade nenhuma. Os campos foram absorvidos pela urbanização, só que é uma urbanização sem nenhum desenvolvimento por causa da ocupação.
Vocês desenvolveram algum projeto nos territórios ocupados?
Sim, eu e o Muhammed criamos a Om Sleiman Farm, é uma fazenda na área C, praticamente muro com muro com assentamento ilegal [israelense]. E essa fazenda é justamente um símbolo para gente capacitar, motivar, encorajar os palestinos que têm na sua cultura o cultivo da terra. É um projeto que tem ganhado notoriedade no mundo inteiro.
Através da agricultura, você vai se sentir pertencente a esse local. Então, por exemplo, a área C, que é de controle de Israel, tem restrições. Esse que é o grande ponto ali. Até hoje conseguimos que Israel não destruísse a nossa fazenda, que está la há cinco anos, na área C, que fica frente a frente com um assentamento. Israel tentou três vezes demolir o projeto e não conseguiu. Esse projeto tem sido cogitado até pela própria UNRWA.