A aparição de um Lula liberto e eloquente, na última semana, mexeu com os espíritos renitentes brasileiros, quase fazendo o interesse pela democracia despertar de um sono profundo. No momento, o sono se confunde com o pesadelo da pandemia.
Um efeito visível dos holofotes postos no ex-presidente foi a reação marqueteira do governo de Jair Bolsonaro, vezeiro em criar fatos mais midiáticos do que aqueles que o ameaçam. Lula livre, em um cenário de mortandade crescente, colapso da saúde, falta de vacinas e governadores tomando a cena que deveria ser ocupada pelo governo federal, suscitaram uma nova movimentação no Planalto.
“O pronunciamento infame e irresponsável de Bolsonaro em cadeia nacional revela o seu desprezo pela ciência, pela saúde e pela vida da população.” @dilmabr sobre a fala de Bolsonaro na TV. #equipeLula https://t.co/lWMjGbp8Tz
— Lula (@LulaOficial) March 25, 2020
A troca de ministro chegou a animar a imprensa com a ilusão de uma virada na política da Saúde. Mas passada a hipnose midiática induzida, ficou bem entendido que a troca deve ser vista como mais do mesmo. Quem continua mandando é o negacionismo de Bolsonaro e a pandemia avança tirando e ameaçando vidas. Quase 2.800 mortes em 24 horas revelam nesta quarta-feira (17) que um quadro pavoroso como o vivido em Manaus em fevereiro com a falta de oxigênio está se reproduzindo pelo país agora com a falta de tudo – leitos, medicações, vacinas e respostas.
Resgatar alguma sensatez na vida nacional tem sido um esforço real de parcelas atônitas da sociedade, movimentos sociais, partidos de esquerda, progressistas ou mesmo os minimamente democráticos. Porém é difícil vencer a eloquência do ódio e dialogar com a loucura do desprezo pela vida, produto da cegueira enraivecida que levou a família Bolsonaro ao poder.
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Agravando a tragédia do vírus que se alastra entre brasileiros, o delírio autoritário que infectou o Brasil nos últimos anos ainda não foi debelado. Desde que o uso malicioso das leis, da mídia e das instituições empurrou legiões para o teatro de horror que foi o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, ficou difícil explicar aos extremistas que a liberdade para atacar o STF, por exemplo, não é tolerável na democracia. Não é legal. Nem constitucional.
O deputado federal bolsonarista, Daniel Silveira, aquele que quebrou a placa com o nome de Marielle Franco, executada há três anos em crime até hoje não esclarecido, e que atacou juízes do STF e agora usa tornozeleiras em prisão domiciliar; e o empresário José Sabatini que resolveu ameaçar ex-presidente em vídeo divulgado na rede, e que também virou caso de polícia, ambos ainda se apoiam e acreditam no ambiente reacionário criado para manipular as eleições de 2018 e a vida nacional.
A intimidação também é usada como arma para tirar o foco da pandemia, e criminalizar aponta o dedo para o governo, como está acontecendo, desde segunda-feira (15), com a tentativa de enquadramento, do youtuber Felipe Neto na Lei de Segurança Nacional por ter chamado o presidente Bolsonaro de genocida.
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1) Um carro da polícia acaba de vir na minha casa.
Trouxeram intimação p/ q eu compareça e responda por
CRIME CONTRA SEGURANÇA NACIONAL
Pq chamei Jair Bolsonaro de genocida.
Carlos Bolsonaro foi no mesmo delegado q me indiciou por "corrupção de menores".
Sim, é isso mesmo. pic.twitter.com/nhMugYfc8c
— Felipe Neto (@felipeneto) March 15, 2021
As reações aparecem nas redes sociais, mas ainda dependem de força popular para alterar a política e recolocar a democracia na ordem do dia. As trends no twitter começam a ser tomadas por hashtags como ParabénsBolsonaro, que o associa às mortes na pandemia, na semana passada #BolsonaroGENOCIDA, em solidariedade a Felipe Netto, na manhã de terça-feira (16).
Pelo primeiro lugar… Da doença e da morte https://t.co/jqfKwDP5Z2
— Pat Suburbana ☣️ (@patsuburbana) March 11, 2021
Bolsonaro genocida não quer ser chamado de #BolsonaroGenocida . Como vamos chamá-lo?
— Ivan Valente (@IvanValente) March 16, 2021
O objetivo da família Bolsonaro não é mais colocar medo em mim. Eles sabem q tenho uma estrutura enorme para me defender.
O objetivo é botar medo EM VOCÊ. Para q VOCÊ tenha medo de falar, por achar q irão te perseguir.
Por isso, isso aqui é MUITO forte.https://t.co/rJtoeeA8hM pic.twitter.com/wCy9Fl6VdJ
— Felipe Neto (@felipeneto) March 16, 2021
A Rede Globo, que tanto interferiu na política e favoreceu o quadro atual se formasse, também tenta pressionar o governo a adotar políticas para enfrentar a pandemia descontrolada. Mas se esse é o mesmo governo instalado como arma sem freios para romper com a proteção do Estado a direitos, patrimônio e recursos assaltados pela política neoliberal, como cobrar que se ocupe da proteção da vida agora?
Quem promoveu a candidatura de Bolsonaro apesar de sua apologia à tortura, ou já fez sinal de arminha com as mãos, pode não achar difícil admitir que sua posição política mata. Bolsonaro nunca escondeu o que pretendia ser na condução do país. Mas quando as perdas de vida chegam perto demais – e nunca estiveram tão perto de cada um – a consciência provavelmente deve atormentar. Não é confortável para ninguém encarar o fato de que uma pessoa morre a cada dois minutos no Brasil, não por causa do coronavírus, mas do descaso de um governo eleito.
Uma pesquisa divulgada nesta quarta-feira pelo Instituto Data Folha de São Paulo indica que o apoio à política de Bolsonaro para a pandemia baixou de 36% em julho de 2019 para 22% e os que a reprovam subiu de 36% para 56% no mesmo período. Não seria preciso nem chegar a isso para afastar um governo incapaz de reconhecer calamidades.
Na política minúscula que asfixia o país, a mediocridade escatológica nos obriga a conviver com as mortes desnecessárias e a sensação de fim do mundo enquanto o governo acena a quem o sustenta com a promessa de novas privatizações. E assim continua passando a boiada.
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