O contato direto do Brasil com a obra do historiador palestino Nur Masalha, através do lançamento, em português, de “Expulsão dos palestinos. O conceito de ‘transferência’ no pensamento sionista (1882-1948)”, vem contribuir para resgatar o debate sobre o conflito Israel-Palestina de um ambiente político rebaixado pela subserviência do governo brasileiro aos interesses do Estado sionista.
Até mesmo crises agudas como Brumadinho, incêndios e a pandemia tem sido explorados para enfatizar a relação de amizade da família Bolsonaro com a agenda Israel-Estados Unidos, de pouca ou nenhuma utilidade para o Brasil nessas situações de desespero – como foi o envio de uma delegação em busca de um spray anti-inflamatório nasal israelense para uso paliativo e não atestado para covid-19.
Nur Masalha não trata do Brasil, mas sua obra diz respeito a todos os povos que viveram ou vivem a violência do pensamento e das práticas supremacistas coloniais. Que infelizmente não estão extirpadas. A leitura faz emergir na memória experiências que, como ele aponta, são comungadas com outros povos que tiveram “sua narrativa negada, sua cultura material destruída e suas histórias apagadas ou reinventadas por colonizadores brancos europeus”, um processo de exaustão das resistências pelo massacre colonial que a América Latina conhece profundamente.
A obra de Masalha produz dois elementos importantes para a identificação dos processos históricos que se repetem: inconformismo com a violência naturalizada historicamente e a empatia entre povos distantes, física ou temporalmente.
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O escritor Edward Said faz a mesma analogia com “sociedades nativas inteiras, que viviam em territórios da América, África e Ásia, apartadas de seu direito de viver nessas terras. Com os grandes movimentos do moderno colonialismo europeu, lembra ele, vieram regimes para “redimir a terra, reassentar os nativos, civilizá-los, domesticar seus costumes selvagens e torná-los seres úteis sob controle europeu.”
O trabalho de Masalha, com onze livros e dezenas de artigos em inglês, árabe e espanhol, traça uma grande linha de investigação sobre a história do povo palestino, cindida pelo antes e depois da Nakba e os inúmeros massacres que deram prosseguimento à limpeza étnica iniciada em 1948, com a expulsão de 800 mil e a destruição de mais de 500 vilas só naquele primeiro ano.
Mas particularmente no livro A expulsão dos palestinos, Masalha vai atrás do contexto político e ideológico anterior à Nakba, e que fomentou esse esvaziamento deliberado e praticamente naturalizado pela historiografia como fato imponderável, decorrente da guerra ou de uma partida voluntária de palestinos de cidades e aldeias palestinas.
O autor demonstra que não. Para o prefaciador da edição brasileira, Daud Abdullah, o esvaziamento total da população nativa da Palestina em 1948 não foi uma coincidência de guerra. Foi o resultado de uma combinação de políticas cuidadosamente planejadas e implementadas progressivamente ao longo de várias décadas. E Masalha apresenta um dos estudos mais esclarecedores e fascinantes das forças ideológicas que impulsionaram esse processo.
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De achados que vão do final do século XIX e até meados do século XX, Nur Masalha investiga comunicações de lideranças sionistas que lidavam com a certeza de que a Palestina não era uma terra sem povo, e que seu povo não abriria mão de sua terra facilmente.
“A remoção organizada da população indígena da Palestina para os países vizinhos”, constatou o escritor em suas buscas, “ocupou uma posição central no pensamento estratégico da liderança dos movimentos sionistas” . Mas especialmente o racismo e a desumanização do povo a ser evacuado facilitaram os planos deliberados de expulsão.
Um comentário de Chaim Weizmann, que viria a ser o primeiro presidente de Israel, mostra o desprezo compartilhado com a Inglaterra por ocasião da Declaração Balfour: “ os britânicos nos disseram que havia umas centenas de milhares de negros e que estes não tinham nenhum valor”.
Nur Masalha é um autor necessário para a compreensão de um processo que continua expulsando a população palestina, naturalizando decisões como a de demolir mais cem casas palestinas em Jerusalém, para dar lugar a um parque dedicado à memória do Rei Salomão. Cerca de 1.550 residentes, incluindo 800 crianças, serão evacuadas nessa ação, uma entre tantas que a mídia israelense e palestina noticiam regularmente. O Observatório de Direitos Humanos Euromediterrâneo a descreve como “operação massiva de destruição e deslocamento”, equivalente a limpeza étnica e crime de guerra, conforme a lei internacional. A expulsão e judaização da Palestina continua.
E é nessa viagem que embarca o atual governo brasileiro. O acordos apoiados pelo Brasil no plano internacional, autorizando a anexação dos territórios ocupados da Palestina e as Colinas de Golã,e os acordos de normalização entre Israel e países árabes, mediados pelos Estados Unidos, demonstram o alinhamento incondicional com um projeto no qual os palestinos continuam sendo uma pedra a remover. Mesmo assim é espantoso que o governo vote na ONU contra um documento sobre direitos humanos palestinos e o classifique como “desequilibrado, parcial e tendencioso”. O apoio do governo brasileiro à ocupação chega ao ponto de colocar-se como amicus curiae em favor de Israel no Tribunal Penal Internacional, onde governantes e militares israelenses são investigados sob acusação de crimes de guerra cometidos contra o povo palestino desde 2014. Crimes que a comunidade internacional testemunhou como espetáculos nas redes sociais.
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