Os árabes ficaram na península ibérica por cerca de oito séculos, mais precisamente 781 anos. Coincidentemente, o ano da queda do último estado árabe ibérico, em Granada, no Sul da atual Espanha, é o mesmo ano do descobrimento das Américas: 1492. Em sua esmagadora maioria, os árabes ibéricos eram muçulmanos. Havia uma minoria de judeus. Os cristãos da península eram católicos, tanto portugueses quanto espanhóis. Com a expulsão do último muçulmano da península ibérica, instaurou-se uma inquisição católica que perseguia muçulmanos e judeus. Foi proscrita qualquer prática pública das religiões islâmica e judaica. Muçulmanos e judeus pegos pela inquisição eram cruelmente torturados e executados. Não restaram muitas opções aos árabes remanescentes no perdido Al-Andalus (como é conhecida a península ibérica na literatura e historiografia árabes clássicas): emigrar para as vizinhas terras islâmicas do norte da África, converter-se ao catolicismo, ou guardar sigilo absoluto das suas práticas religiosas, sob o risco de serem pegos pela inclemente inquisição.
A presença árabe-islâmica não foi um fato passageiro e irrelevante na história da península ibérica. De fato foram a religião islâmica e a língua árabe os primeiros civilizadores dos territórios dos atuais Espanha e Portugal. Sob o domínio árabe-islâmico, floresceu uma cultura do mais alto nível na história da humanidade. Antes da presença árabe, a península ibérica sempre foi uma região periférica do vasto Império Romano, caracterizada pelo descaso das autoridades centrais em Roma. Não havia prosperidade cultural e econômica naquela esquecida região. Com a conquista árabe, o Al-Andalus teve dias de esplendor e glória. Floresceram filosofia, teologia, literatura, poesia, medicina, arquitetura, ciências; a região tornou-se o principal centro cultural de conhecimento erudito em toda a Europa durante boa parte da Idade Média.
Quem visitar a Espanha e Portugal hoje, verá os legados arquitetônicos árabes pela península, principalmente ao sul, na cidade de Granada. Mas o legado árabe a portugueses e espanhóis não se restringe a palácios (como o famoso palácio de Alhambra), monumentos e mesquitas, ele faz-se sentir em todo o patrimônio cultural imaterial ibérico. O trovadorismo português e espanhol é herança dos poetas árabes ibéricos. Mesmo em poetas ibéricos mais recentes, podemos notar influência árabe, como em Lorca. O maior poeta de língua portuguesa dos tempos modernos, Fernando Pessoa, não escondia a sua admiração e respeito pelos árabes que, segundo ele mesmo dizia, foram os que civilizaram a península ibérica. Durante muito tempo, a Córdoba muçulmana e árabe foi a principal cidade da Europa em termos de população e de refinamento cultural e intelectual.
Grandes nomes árabes da península ibérica foram imortalizados nas culturas árabe e universal. Ibn Rushd, ou Averróis, como é conhecido nas línguas ocidentais, foi médico, teólogo, intelectual e, sobretudo, um dos maiores filósofos do mundo na Idade Média. Era referência para estudiosos e eruditos europeus. Tamanha é a sua importância para a Europa, que o gênio renascentista Rafael incluiu o seu retrato no famoso quadro “Escola de Atenas”, no qual aparecem outros grandes vultos do pensamento universal, como Sócrates e Platão. Na Divina Comédia, de Dante, também aparece Ibn Rushd, como um dos integrantes do paraíso, junto com outro grande filósofo e polímata muçulmano, Ibn Sina, ou Avicena como é conhecido nas línguas ocidentais.
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Legado na língua
O vernáculo português acabou adotando e incluindo várias palavras árabes, que sofreram adaptações para a nova língua, ou seja, foram aportuguesadas. Ao consultar dicionários etimológicos ou estudos de etimologia, o leitor deparar-se-á com um número razoável de palavras cuja origem é da língua árabe. Estas palavras não são usadas somente nos colóquios do cotidiano nos países de língua portuguesa, mas aparecem também nas obras literárias e em estudos eruditos. Há estimativas que dizem que há cerca de mil palavras de origem árabe no atual vernáculo português. Um grupo destas palavras é indispensável ao dia-a-dia, outro grupo tem um uso mais restrito nos círculos intelectuais e eruditos, o terceiro grupo entrou em desuso pelas transformações culturais que o mundo sofreu desde a Idade Média.
O legado árabe nas línguas portuguesa e espanhola nada tem de relação com a atual presença de comunidades de árabes imigrantes em toda a América Latina e na península ibérica. Este legado atravessou os séculos, do tempo de Al-Andalus, e persistiu até os dias de hoje. Isto significa que a influência árabe conseguiu manter-se sobre os ibéricos apesar das derrotas e de sua total expulsão do norte do estreito de Gibraltar. Este famoso estreito é um epônimo do famoso conquistador muçulmano Tariq ibn Ziad, que foi um dos principais líderes militares nos primórdios da conquista árabe de Al-Andalus. Gibraltar é uma adaptação ocidental do termo árabe “Jabal Tariq”, que significa literalmente “Monte de Tariq”.
Talvez não seja surpresa para muitos saber que palavras como “azeite”, “azeitona”, “açúcar”, “alface”, “alcachofra” “almofada”, sejam de origem árabe. Comes e bebes têm uma grande contribuição da língua árabe. Talvez seja supresa para muitos saber que palavras como “café” e “banana” sejam de origem árabe. O café, de origem etíope, teve o seu uso criado e difundido pelo mundo pelos árabes. A raiz do termo vem do árabe “Qahwi”, originalmente um dos nomes das bebidas alcoólicas, mas que hoje é usado exclusivamente, no árabe moderno, para referir-se ao cafézinho mesmo. A palavra café nada mais é, portanto, do que corruptela do árabe “Qahwi”. O grão de café, em árabe, recebe um nome distinto “bunn”, que dá nome à cor marrom: “bunni”. A palavra “banana” vem do árabe “banan”, que significa literalmente dedo, uma vez que os árabes antigos chamavam esta fruta de “banan al-mawz”, ou seja, dedo de mawz; o nome da fruta, até hoje, em árabe é “mawz”. Mas, o termo “banana”, ficou como um legado do árabe para as línguas ocidentais.
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Ao estudar a História do Brasil, e mais especificamente a parte dela relacionada ao regime escravorata, muitas vezes deparamo-nos com o termo “alforria”. Intuitivamente, deduzimos que esta palavra é sinônimo de liberdade, mas pouca gente imagina que esta palavra vem do árabe “Al-hurriya”, que tem o mesmo significado: liberdade. Assim, é motivo de orgulho para todos os árabes que a sua língua esteja presente na língua portuguesa ao fazer referência a algo tão nobre e generoso como a libertação de escravos. Por outro lado, um outro termo, de uso não tão nobre assim, mas infame e vexatório, ainda no campo escravorata, o famoso “açoite”, vem do árabe “as-sot”, sinônimo de chicote usado para infligir castigos aos escravos.
Às vezes mesmo para um árabe, certas palavras podem causar surpresa ao descobrir que são de origem árabe, ou porque foram aportuguesadas a tal ponto que ficou difícil correlacioná-las com o original árabe, ou porque entraram em desuso no árabe moderno. Foi o que aconteceu comigo quando estive em Aracaju-SE por alguns meses nos anos de 2017 a 2018. Durante a minha estadia lá, fiquei um tempo hospedado no bairro de “Atalaia”, na orla marítima da cidade. Desconhecia completamente o significado deste nome do bairro da capital sergipana. Não dei a mínima para o que pudesse significar. Até que um belo dia fui procurar no dicionário: ” (do árabe at-talia): 1) Na Idade Média, uma das principais torres de uma castelo onde ficavam os vigias_2) Lugar elevado de onde se pode vigiar_3) Observação visual, o ato de vigiar//estar de atalaia: estar de vigia (Fonte: enciclopédia Larousse Cultural). Este termo militar árabe “atalae´a” ou “at-talia”, que é usado para referir-se aos vigias de um exército ou fortificação hoje faz parte da língua portuguesa sem que muitos bilingues fluentes no árabe e português eruditos possam se dar conta disso!
Por vezes, um termo português vem do árabe sem que tenha o mesmo uso na língua original. Isto acontece com a palavra “alfarrábio”, que vem do árabe “Al-Farabi”, que tem o significado, em português, de: “livro antigo e de leitura cansativa”. Acontece, e até onde eu sei, não há uma palavra em árabe para corresponder a este exato significado incorporado na língua portuguesa do próprio árabe. Como isso pode acontecer? Há algum erro ou equívoco? De fato, não há erro ou equívoco algum. Al-Farabi, em árabe, é nome próprio para um dos maiores filósofos da história do Islam, originário da cidade de Farab, na Ásia Central. Este famoso filósofo é autor de uma das mais conhecidas utopias, bem antes do inglês Thomas Morus, a obra intitulada pelo filósofo islâmico de ” A Cidade Virtuosa”, ou também “A República Virtuosa”. Al-Farabi é conhecido na literatura e historiografia islâmicas clássicas como “o segundo mestre”. O “primeiro mestre” é ninguém menos que o grego Aristóteles. Assim, se você falar em árabe “Al-Farabi”, nenhum árabe vai entender isso como “livro velho e de leitura cansativa”, mas tão-somente vai lembrar do segundo mestre. Já em português, esta palavra árabe deu origem a uma palavra nova, da qual deriva a palavra alfarrabista para os profissionais que trabalham com sebos. Se o Al-Farabi soubesse disso com certeza ficaria honrado assim como a língua árabe fica honrada de ter o seu lugar na língua portuguesa no que se refere ao símbolo maior do conhecimento e da cultura: o livro.
Os fazendeiros e pecuaristas do Brasil são obrigados diariamente a lidar com a língua árabe. Não estamos falando em negociar a venda de grãos e carnes para países do Oriente Médio, embora nestes negócios, mesmo na era do uso ubíquo da língua inglesa nas transações comerciais internacionais, seja de bom alvitre que haja intermediários versados na língua árabe e religião islâmica. Os fazendeiros e pecuaristas são obrigados diariamente a usar duas palavras árabes fundamentais no seu ofício, são elas: “arroba e alqueire”. “Arroba” vem do árabe “ar-roba`a”, que significa a quarta parte, é uma medida de aproximadamente 15 kg usada para pesar o gado. Já “alqueire”, que vem do árabe “al-keyl”, é uma medida usada originalmente para pesar secos e molhados, mas que hoje tem o seu uso para estimar medidas de áreas territoriais rurais como fazendas.
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Palavras como auge, zênite, tarifa, almirante, fulano, alarde, alvará, azulejo, alfazema, alfafa, todas vêm do árabe. Certa vez eu estava lendo o romance “Caim”, do escritor português ganhador do prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, quando encontrei a palavra “albarda”. Intuí que pudesse ser de origem árabe, pela semelhança com a sua equivalente em árabe. Recorri de novo à Larousse Cultural, e estava lá o verbete: Albarda (do árabe al-bardoa): espécie de sela grosseira que se coloca no lombo dos animais de carga para melhor distribuir o peso e facilitar as condições de transporte. Mais uma palavra de pouco uso, mas que confirma a arraigada presença da língua árabe no português moderno.
Dívida eterna
A dívida do Ocidente para com o Oriente é uma dívida eterna. Desde a era pré-cristã, quando os fenícios levaram o seu alfabeto da costa do atual Líbano para a Grécia, que o adotou e adaptou ao gosto helênico, até os sábios, intelectuais e filósofos árabes da Idade Média que foram decisivos para o renascimento europeu, o Ocidente deve gratidão ao Oriente que generosamente lhe doou sabedoria, conhecimento e erudição. Por mais que tente negar, o Ocidente tem nas suas línguas e cultura marcas e influência inegáveis das culturas árabe, islâmica, levantina e oriental em geral. O legado da língua árabe para a língua portuguesa é um exemplo muito ilustrativo.
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