Em 31 de março de 1964 os militares derrubaram o presidente João Goulart, sob a justificativa da ameaça comunista. O golpe deu início a um longo período de ditadura militar no país, marcado por autoritarismo, repressão, censura e instituicionalização da tortura. No aniversário dos 57 anos do golpe, o novo ministro da Defesa, general Walter Braga Neto, divulgou uma mensagem fazendo apologia à data, em que afirma que “deve ser compreendido e celebrado” e que “representou um marco para a democracia. Muito mais pelo que evitou”. O vice-presidente, Hamilton Mourão, também publicou uma mensagem celebrando o golpe de Estado: “Neste dia, há 57 anos, a população brasileira, com apoio das Forças Armadas, impediu que o Movimento Comunista Internacional fincasse suas tenazes no Brasil. Força e Honra!”
O que: Golpe militar de 64
Onde: Rio de Janeiro, Brasil
Quando: 31 de março de 1964
O que aconteceu antes:
Em 1961 o vice-presidente da República João Goulart, conhecido como Jango, assumiu o poder depois da renúncia do presidente Jânio Quadros. Jango enfrentou uma forte oposição à sua nomeação de grupos conservadores, principalmente elites e setores das Forças Armadas, que o acusavam de ter tendências políticas de esquerda. Enquanto isso, setores de apoio ao governo iniciavam um movimento de resistência pela legalidade da posse de Goulart. A solução foi o estabelecimento do regime parlamentarista de governo, que reduz os poderes do presidente. Em janeiro de 1963, Jango restabeleceu o sistema presidencialista e passou a governar com maiores poderes constitucionais, após um plebiscito para decidir a manutenção ou não do parlamentarismo.
No contexto da Guerra Fria, o governo dos Estados Unidos considerava João Goulart extremamente de esquerda para um presidente brasileiro e, por isso, tinha interesse em desestabilizar seu governo, para isso passaram a financiar grupos e políticos conservadores no Brasil. Dois grupos receberam grande financiamento americano: o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). O Ibad recebeu milhões para financiar mais de oitocentos políticos conservadores nas eleições, com o objetivo de criar uma frente parlamentar para barrar o governo de Goulart, financiamento ilegal segundo a legislação da época. O Ipes secretamente financeou campanhas de propaganda anticomunista, manifestações públicas antigovernistas e grupos e associações de oposição ou de extrema direita. A imprensa brasileira também contribuiu na construção da narrativa de que o país caminhava para o comunismo.
Em 13 de março de 1964, Jango discursou em um evento organizado por entidades sindicais, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, defendendo a necessidade das reformas de base (agrária, tributária, eleitoral, bancária, urbana e educacional). Em resposta, no dia 19 de março, aconteceu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo, que reuniu mais de 400 mil pessoas. Empresários, latifundiários e a sociedade conservadora protestavam contra um governo que consideravam como o início do comunismo no país.
No dia 25 de março, aconteceu a revolta de marinheiros que reivindicavam representação política e defendiam reformas de base e da entidade. Em 30 de março, Jango fez um discurso em defesa das reformas em uma assembleia de sargentos, no Automóvel Clube, no Rio de Janeiro.
O que aconteceu:
O golpe militar foi planejado pelos conspiradores (militares, membros do Ipes e americanos através da Operação Brother Sam) para acontecer no dia 10 de abril. Mas, como reação ao discurso de Jango, o general Olympio Mourão Filho encaminhou tropas militares de Juiz de Fora (MG) até o Palácio das Laranjeiras, no Rio, no dia 31 de março de 1964, com o objetivo de derrubar o governo. O aliado de Jango no exército, Amaury Kruel, retirou o seu apoio ao presidente, deixando-o isolado.
LEIA: Desprezo pela pandemia e pela democracia no autoritarismo de Bolsonaro
Os parlamentares no dia 2 de abril declararam a Presidência vaga, embora Jango continuasse no país, e o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli assumiu interinamente. No dia 4 de abril, Jango e sua família se exilaram no Uruguai.
O primeiro Ato Institucional foi emitido em 9 de abril, oficializando o golpe. “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo.”, afirmava o AI-1 sobre o golpe. Dois dias depois, Humberto Castello Branco foi eleito indiretamente presidente do país.
“Farei quanto em minhas mãos estiver para que se consolidem os ideais do movimento cívico da nação brasileira nestes dias memoráveis de abril, quando se levantou unida, esplêndida de coragem e decisão, para restaurar a democracia e libertá-la de quantas fraudes e distorções a tornavam irreconhecível. Não através de um golpe de Estado, mas por uma Revolução”, disse Castello Branco em seu discurso de posse.
Em 1965, com o Ato Institucional nº2 os partidos políticos foram fechados e foi adotado o bipartidarismo, com a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), de apoio ao governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição “responsável”. Também determinou eleições indiretas para a presidência, ampliou os poderes arbitrários do presidente da República para impor estado de sítio e intervir nos Estados e transferiu para a Justiça Militar os julgamentos de civis.
O governo também revogou a Constituição de 1946, aprovando a Nova Carta Constitucional, apelidada de “Constituição Liberticida” pelo seu autoritarismo, em 24 de janeiro de 1967.
O período mais sombrio da ditadura brasileira teve início com a promulgação do Ato Institucional nº 5, pelo presidente Costa e Silva, que fechou o Congresso por tempo indeterminado, decretou estado de sítio, cassou mandatos e proibiu reuniões. Ele foi uma resposta de Costa e Silva à Passeata dos 100 mil, manifestação popular contra a ditadura brasileira, provocada pelo assassinado do estudante Edson Luis, em 28 de março de 1968.
A partir de 1969, iniciaram-se os anos de “Anos de Chumbo”, com o governo do general Emílio Garrastazu Médici. A pretexto de combater os chamados “subversivos” e Estado começou a reprimir aqueles que contestassem o regime diretamente com censura, vigilência, tortura, prisões ilegais e desaparecimentos.
A partir de 1976 o presidente seguinte, Ernesto Geisel, decidiu controlar esses “porões da repressão” com uma estratégia de abertura política lenta para preparar o regime para uma futura transição para um governo civil. Em 1979, o regime propôs a “Lei da Anistia”, que permitiria a volta dos exilados e liberaria presos que não tivessem cometido “crimes de sangue”. Organizações de defesa dos direitos humanos estimam que cerca de 100 mil pessoas foram perseguidas ou detidas durante o período da ditadura militar.
O que aconteceu depois:
A ditadura militar durou vinte e um anos, teve cinco mandatos militares e instituiu 16 atos institucionais, que se sobrepunham à constituição. Neste período de excessão houve tortura, censura, autoritarismo, repressão de direitos, restrição à liberdade e causou uma hiperinflação no país. O fim do regime só aconteceu em 14 de março de 1985, quando José Sarney assumiu como presidente interino após a morte de Tancredo Neves.
LEIA: Governo demite os três chefes das Forças Armadas, em reunião tensa
Um marco na redemocratização do país é a Constituição de 1988, em vigor até hoje e apelidada de “cidadã”. Ela demorou mais de dezenove meses para ser elaborada pela Assembleia Constituinte, durante a presidência de Sarney. Amplamente democrática e liberal, a constituição cidadã estabeleceu o sistema presidencialista com voto direto, fortalecimento do judiciário, assistência social e ampla garantia de direitos fundamentais.
Na década de 90, uma descoberta expôs para o país a violência cometida pelo governo militar e qual pode ter sido o destino das centenas de desaparecidos políticos do período. Em 4 de setembro de 1990 foi descoberta, no cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo, uma vala clandestina com mais de mil sacos de ossos humanos. As análises comprovaram que a área havia sido usada ilegalmente por agentes do Estado durante a ditadura militar, para ocultar os corpos de mortos pelo regime e dos considerados desaparecidos. O trabalho para a identificação das ossadas só começou de fato em 2004 e ainda não acabou. Estima-se que 42 corpos despejados na vala eram de militantes políticos.
Apenas em 2011, uma Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada e formulou recomendações para que o Estado possa promover justiça com relação aos crimes ocorridos durante o período militar, reparar simbólica, financeira e psicologicamente às vítimas e reformar suas instituições, aperfeiçoando a democracia e visando a não repetição das violações de direitos humanos que ocorreram no período. E é resultado de décadas de luta dos familiares de mortos e desaparecidos exigindo o esclarecimento dos crimes cometidos pelos militares. A CNV listou 191 mortos, o desaparecimento de 210 pessoas e outros 33 desaparecidos que tiveram seus corpos encontrados depois. O relatório final responsabilizou 277 pessoas. Até hoje a Lei de Anistia impede a punição dos torturadores.
LEIA: A “nova ordem” e o pária mundial
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.