O encalhamento do Ever Given foi acidental ou intencional?

Navio de carga Ever Given visto de uma aldeia perto do Canal de Suez, no Egito, em 28 de março de 2021 [Mahmoud Khaled/Getty Images]

Em 29 de março, autoridades egípcias anunciaram oficialmente que o colossal navio de carga Ever Given, encalhado no Canal de Suez por seis dias, enfim voltou a navegar. Contudo, embora a embarcação tenha desobstruído a via dias atrás e navios atracados em ambos os lados do canal começaram a se mover, discussões sobre o incidente continuam.

O Canal de Suez é a principal rota marítima para o movimento de bens entre Ásia e Europa. Foi responsável pelo tráfego de mais de 19 mil navios em 2019 – em torno de 13% do comércio global. O bloqueio, que durou uma semana, despertou debates sobre alternativas em potencial – ao menos opções emergenciais –, além de deliberações sobre o caráter acidental ou incidental do caso Ever Given.

Após anunciada a liberação da gigantesca embarcação, a Autoridade do Canal de Suez (SNA) reiterou sua promessa de lançar uma investigação abrangente sobre o encalhamento. Segundo o jornal The Washington Post, a SNA não deverá focar seu inquérito apenas no clima, dado que o principal suspeito é uma tempestade de areia, mas pretende analisar também erros técnicos e humanos cometidos no processo. A ênfase remete a eventuais dúvidas de que o navio poderia ter obstruído o canal intencionalmente.

Tais dúvidas não repousam apenas sobre os ombros de funcionários da autoridade egípcia, mas também jornalistas, analistas e especialistas que acompanharam a situação durante a crise. A localidade do encalhamento carrega imenso significado, porventura escolhida deliberadamente para ser disruptiva – quem sabe, planejada para causar a absoluta paralisia do fluxo marítimo no canal.

Suez possui duas rotas marítimas nos limites do Mediterrâneo, mas o Ever Given encalhou justamente na área de mão única e interrompeu por completo o movimento na passagem de 193 km de extensão, abalando mercados globais e resultando em súbito aumento nos preços de bens e commodities.

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Não obstante, apesar de haver ao longo de Suez diversas margens irregulares, o Ever Given encalhou justamente em um aterro arenoso e uniforme, que não causaria danos significativos à embarcação. Caso encalhasse em uma margem rochosa, seriam necessárias inúmeras equipes de manutenção para consertá-lo ou transferí-lo a uma área de segurança. Parece-nos então que o incidente pretendia enviar uma mensagem em particular – de que navios de carga tornam-se cada vez maiores e mais complexos e que deveria haver rotas mais confiáveis para que transitem, de modo a jamais impedir o comércio global, sobretudo entre Ásia e Europa.

Autoridade do Canal de Suez anuncia o êxito dos esforços para desencalhar o enorme navio de carga Ever Given e retomar o tráfego na via marítima [Zeynep Öztürk/Agência Anadolu]

É cedo demais para apontar dedos, mas diversos lados apresentaram seus cenários alternativos, o que seria facilmente delegado a empresas de transporte em busca de rotas diretas e rápidas para evitar atrasos. Exportadores e importadores afetados pelo aumento nos custos de matéria-prima e produtos em geral ficariam satisfeitos com tais alternativas.

Reiterou, porém, que não podemos acusar lado algum de causar intencionalmente a crise em Suez. Por outro lado, podemos analisar as opções enfatizadas no momento.

A rede Business Insider, por exemplo, recordou uma antiga proposta dos Estados Unidos da década de 1960. “O plano jamais entrou em vigor”, escreveu Marianne Guenot. “Mas ter uma via marítima alternativa ao Canal de Suez poderia ser útil hoje, enquanto continua preso um navio de carga na estreito trajeto, bloqueando uma das rotas de navegação mais essenciais do mundo”.

Alertou o Arab Weekly, em referência à proposta americana: “Os israelenses promovem seu projeto de via marítima Ben Gurion como rival do Canal de Suez … Israel planeja converter o seu canal em um projeto multifacetado, além de permitir um papel comercial em desafio a Suez … ao construir pequenas cidades, hotéis, restaurantes e boates em torno da hidrovia”.

O Arab Weekly divulgou ainda análises que sugerem que as autoridades egípcias reconhecem as ameaças impostas pelo eventual projeto israelense a Suez. Especialistas também preveem que a Jordânia ficaria satisfeita em beneficiar-se da alternativa, assim como Arábia Saudita, dado que poderia ajudar a prosperar a cidade planejada de Neom, zona econômica transnacional que Riad pretende converter em grande atração turística.

A crise no Canal de Suez [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Ainda além, a Reuters reportou declarações do Ministério de Energia da Rússia de que o navio encalhado em Suez despertou alertas sobre a segurança e sustentabilidade de sua Rota dos Mares do Norte, além de gasodutos russos. O ministério em Moscou reiterou a “alta segurança e posição competitiva [de suas rotas] em termos de custos de transporte e fiabilidade em comparação com alternativas”. A emissora indiana NDTV destacou rumores de que o presidente russo Vladimir Putin há muito busca promover a passagem setentrional ao longo da costa siberiana como rival de Suez, ao observar: “A Rússia aproveitou o engarrafamento na rota egípcia para voltar ao jogo”.

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A rede Agence France-Presse (AFP) esclareceu que Moscou investiu pesadamente no desenvolvimento da Rota dos Mares do Norte, que poderá permitir às embarcações cortarem quinze dias de viagem dos portos asiáticos ao mercado europeu, em comparação com a trajetória convencional de Suez. Relatos também indicam que a Rússia planeja enviar embarcações quebra-gelo para escoltar navios de carga e impedir eventuais crises.

O Arab Weekly reportou ainda que Kazem Jalali, embaixador iraniano em Moscou, reivindicou a ativação da rota setentrional, ao declarar no Twitter: “Acelerar a conclusão das obras de infraestrutura e ativar o corredor norte-sul é mais importante do que nunca e melhor opção como trajeto alternativo ao Canal de Suez”.

O Presidente do Egito Abdel Fattah el-Sisi está ciente dos riscos e ameaças enfrentados pela dilapidada economia de seu país ao depender de recursos coletados do tráfego marítimo via Suez, em direção a outros países. Desta forma, exagerou o êxito da desobstrução do Ever Given e tentou emitir garantias acaloradas ao mundo.

“Os egípcios foram bem sucedidos em encerrar a crise do navio que encalhou em Suez, ao retomar as coisas a seu curso normal”, declarou o general. “Assim, garantimos ao mundo a segurança do transporte de bens e itens essenciais via nossa artéria pivotal de navegação”.

David Hearst crê que o regime egípcio liderado por Sisi representa um “mentiroso aplicado” e destaca: “[Sisi] mente a seu próprio povo todos os dias; em tempos de crise, mente também à comunidade internacional”.

A investigação sobre o caso jamais deverá expor a verdade de fato – nem aos egípcios, tampouco ao mundo. Acidente ou ato deliberado, permanecerá um mistério. A única realidade prática é que diversos projetos são hoje discutidos como alternativa ao Canal de Suez. Caso algum deles entre em vigor, terá efeitos desastrosos à economia do Egito.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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