Os números são alarmantes e mostram que o pico pandêmico tem ainda outra variante: a fome. Para além da violência a que são submetidos cotidianamente, pobres aqui e palestinos sob ocupação estão neste momento entre morrer porque não têm o que comer ou por falta de vacina.
Conforme o Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no contexto da pandemia de Covid-19, realizado em dezembro de 2020 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, mais da metade da população enfrenta insegurança alimentar. São 116,8 milhões sem acesso pleno e permanente a alimentos. Para 19,1 milhões destes – 9% dos brasileiros – a situação é grave: estão passando fome. O quadro se agrava nas regiões mais pobres do país: no Norte, em 18,1% dos lares as pessoas não têm o que comer. No Nordeste, são 13,8%.
Na Palestina sob ocupação, conforme a Organização das Nações Unidas (ONU), metade da população tem dieta nutricional comprometida e 32,7% enfrentam o agravamento da insegurança alimentar em meio à pandemia. Em Gaza, cuja situação dos 2 milhões de habitantes é ainda mais dramática em função do cerco israelense desumano há quase 14 anos e bombardeios frequentes, são 68,5%. Metade das crianças vive quadro de desnutrição crônica. Mais de um milhão depende de ajuda humanitária para se alimentar.
A fome também tem gênero e raça. De acordo com as mesmas fontes, em Gaza, 54% das famílias chefiadas por mulheres enfrentam insegurança alimentar. No Brasil, 11,1% estão sem ter o que comer e entre pretos e pardos, 10,7%.
Insegurança hídrica
O relatório brasileiro constata ainda que “a fome vem acompanhada de muitas outras carências, destacadamente a falta de água. A insegurança hídrica […] atingiu em 2020 40,2% e 38,4% dos domicílios do Nordeste e Norte, respectivamente, percentuais quase três vezes superiores aos das demais regiões. O abastecimento irregular de água é uma das condições que aumentam a transmissão […] da Covid-19, ocorrendo com maior frequência em domicílios e regiões mais pobres do país”.
Na Palestina, a ocupação sionista, como denuncia a organização de direitos humanos Al Haq em informe, mina a capacidade da população “de prevenir e mitigar adequadamente os impactos da pandemia”.
“O acesso dos palestinos à água na Cisjordânia ocupada é negado em favor do fornecimento a assentamentos israelenses ilegais. Assim, quase 50 mil palestinos que residem na Área C [sob controle militar sionista, na divisão feita pelos desastrosos acordos de Oslo em 1993] vivem sem acesso à água limpa. Além disso, são impedidos de construir e renovar sua própria infraestrutura de água por meio de severas restrições de construção impostas pela administração israelense, tornando difícil ter água suficiente para consumo doméstico e para manter a autossuficiência e independência alimentar”, aponta a Al Haq.
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E continua: “Diante disso, em 2016, os palestinos na Cisjordânia ocupada consumiam em média apenas 73 litros de água por dia, bem abaixo dos 100 litros recomendados pela OMS [Organização Mundial da Saúde], enquanto os colonos israelenses consumiam aproximadamente 369 litros por dia, mais de três vezes a média recomendada.” Segundo a organização, hoje, esses residentes ilegais consomem três a oito vezes mais água do que toda a população palestina da Cisjordânia.
A situação em Gaza, como continua a Al Haq, é “particularmente preocupante”. Em seu texto, demonstra: “De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a partir de 2019, apenas uma em cada dez famílias de Gaza tinha acesso à água limpa e segura. Apenas 5% do abastecimento é fornecido por Israel, a potência ocupante, enquanto o restante vem do aquífero costeiro, que está amplamente contaminado, ou de poços privados, inacessíveis para a maioria dos palestinos. Além disso, menos de 4% da água doce de Gaza é própria para uso e consumo humano.”
Nos campos de refugiados na região do Oriente Médio, em que vivem 5 milhões de palestinos impedidos de retornar às suas terras, a situação também é de extrema vulnerabilidade. Grassam a pobreza, condições insalubres e falta de água potável em habitações e ruas estreitas que lembram as favelas brasileiras.
Visita a um deles relatada por Philippe Lazzarini, comissário geral das Nações Unidas, a estados-membros durante um encontro online no dia 7 de abril dá uma mostra: “Na semana passada, estive no campo Ein El Hilweh, no sul do Líbano, e um jovem refugiado palestino desempregado me disse que constantemente se pergunta se morreria de Covid, de fome ou tentando atravessar o Mediterrâneo em um bote. As pessoas lutam diariamente para garantir uma refeição para a família. […] Ninguém deveria ter que escolher entre essas três opções mortais.”
A Nakba (catástrofe) continua. Não obstante, o Estado racista de Israel segue a se apresentar como bom moço na luta contra a fome no Brasil. A iniciativa de dar migalhas para limpar sua imagem enquanto regime institucionalizado de apartheid não passa de propaganda para encobrir seus crimes contra a humanidade. Inclusive os cometidos nos locais em que o sionismo fala em matar a fome, onde armas e tecnologias militares israelenses estão nas mãos das polícias. Derramam o sangue jovem e negro nas periferias brasileiras, depois de testadas nas cobaias humanas palestinas.
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Apartheid sanitário e genocídio
Enquanto isso, a vacinação caminha a passos tragicamente lentos. No Brasil, cujo Sistema Único de Saúde (SUS) tem capacidade de vacinar mais de 2 milhões por dia, pouco mais de 10% da população tomou a primeira dose desde o início da campanha, em janeiro último. O responsável direto é o desgoverno genocida de Bolsonaro, que optou pelo caminho do vale da morte – ao não comprar as doses necessárias e atuar contra as medidas de contenção recomendadas pela ciência, fazendo mesmo campanha contra elas. O saldo é de mais de 340 mil mortos – quatro a cada cinco poderiam ter sido evitadas em 2021, com vacinação e lockdown, segundo afirmou em uma de suas lives semanais o biólogo, pesquisador e doutor em virologia Átila Iamarino.
Na Palestina ocupada, em que até o momento a imunização atingiu o irrisório percentual de 0,2% de uma população de 5 milhões, a Covid-19 tem sido mais um instrumento de punição coletiva combinada com limpeza étnica planejada e seletiva – apartheid sanitário como capítulo dos crimes sionistas contra a humanidade em curso há mais de 72 anos. O impacto político na saúde da população é demonstrado pela médica palestina Samah Jabr em live promovida pelo movimento BDS Brasil no dia 18 de março último, como parte da Semana contra o Apartheid Israelense.
O sionismo tem usado a vacina como moeda de troca, chantagem, punição coletiva, limpeza étnica e também propaganda. Agora o marketing se voltou para o chamado “projeto S” do Instituto Butantan em Serrana, interior paulista, cidade de pouco mais de 45 mil habitantes escolhida para estudo sobre imunização em massa. Conforme divulgado pela mídia, o cônsul-geral de Israel em São Paulo, Alon Lavi, se reuniu com o prefeito do município, Léo Capitelli (MDB) no dia 6 de abril para “produzir conhecimento” sobre o assunto e firmar acordo de cooperação técnica que pode se estender para áreas como inovação, agricultura e gestão da água.
O “estudo” é a desculpa perfeita para avançar em acordos que em nada vão beneficiar os brasileiros, enquanto servirão para sustentar a ocupação criminosa.
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