A edição brasileira do livro “Hebron, a cidade impossível” (Florianópolis, editora Fedayin com apoio do Ibraspal e da Frente Palestina Livre, janeiro de 2021) nos oferece uma visão ímpar da luta de libertação do povo palestino. Em suas 159 páginas, incluindo os anexos, a obra de Ahmad Jaradat (1961-) autor nascido e formado na Palestina ocupada possibilita a percepção, mesmo que à distância, do que é viver sob a ocupação sionista. Como é sentir-se oprimido e visto como “estrangeiro” em sua própria terra.
A versão em língua portuguesa começa com o poema do médico e poeta árabe-palestino-brasileiro Yasser Jamil Fayada, “Querem Sinceramente”. No verso homenageando a vila de Al Khalil (a denominação de Hebron antes da invasão sionista, nome da localidade bem anterior ao Mandato Britânico), o brimo diz:
“Querem arrancar-me do peito o amor que tenho pela minha Hebron. Não por mim… dizem!”. Porque e por quem então? O livro segue com a introdução assinada pelo médico e poeta citado, pelo agrônomo Jamil Abdalla Fayad e o comerciante palestino radicado em Santa Catarina, Khader Othman. Nesta parte temos a trajetória histórica da luta do povo palestino, da causa e do movimento nacional árabe, e da presença centenária do invasor europeu. A contribuição dada pelo livro para a luta de libertação está nas práticas descritas como:
“O livro que apresentamos hoje ao público brasileiro descreve formas de lutas não violentas entre elas a chamada ‘luta conjunta’, que congrega palestinos de diferentes organizações da sociedade civil e judeus antissionistas em ações de não violência num experimento específico em Hebron”.
O livro propriamente dito traz prefácio, mapa da cidade sitiada e os seguintes capítulos: O cerco ao centro da cidade; Políticas de Israel; Violação dos Direitos Humanos; A caminho de Hebron sob o jugo sionista; Hebron sob as trevas sionistas; Resistência popular e luta e a Conclusão. Pleno de imagens, fotos e ilustrações históricas, a obra nos faz ao mesmo tempo refletir e nos indignar. A indignação aparece quando somos postos no meio da divisão arbitrária e a segregação do espaço urbano:
“A divisão interna e a fragmentação da cidade criaram um ambiente no qual as distâncias entre as áreas da cidade aumentam exponencialmente para os palestinos. Isso interrompeu o ritmo da cidade. Os laços entre vizinhos e familiares foram e são desfeitos sistematicamente”. Desde 2017 tem um município de colonos (um eufemismo para invasores civis armados e apoiados por um exército também invasor que é financiado pelos EUA) na área chamada pelo inimigo como H2. Para garantir o cotidiano de invasores racistas, o exército sionista transforma o dia a dia dos moradores originários em um inferno.
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“Cerca de 200 alunos estudam na Escola Córdoba, situada à rua al-Shuhada, perto da colônia sionista de Biet Hassadah. Os alunos devem passar pelos postos de controles (checkpoints) 56 e 55 para acessar à escola. Os soldados ficam perto da entrada o tempo todo. Interrogam e assediam os alunos. Às vezes, esses soldados israelenses invadem a escola. Os estudantes vivem em constante ameaça de colonos e soldados. O diretor da Escola Córdoba, Nora Nassar, acrescenta que os colonos frequentemente atacam os alunos jogando pedras e água suja na escola”.
A reflexão vem junto com mais compromisso. “A normalização é uma ferramenta política, cultural e econômica usada para ignorar as raízes e razões históricas do conflito e lidar com os resultados do mesmo como algo naturalizado. Significa fornecer à ocupação uma cobertura legal, cultural e ética, enquanto negligencia as dimensões éticas, politicas e culturais dos palestinos que lutam contra a ocupação”.
O texto original conclui apontando as falhas e fracassos após os Acordos de Oslo – “acordos” os quais o inimigo não cumpriu – e a necessidade de uma ampla coalizão para assegurar a luta contra a ocupação e a libertação da Palestina.
A edição brasileira ainda traz dois aportes. O primeiro está na contra capa, quando o professor Emir Sader afirma que “A Palestina é uma nação na busca do seu espaço, dos seus direitos, em que se vive todo dia em risco, mas também na luta pela dignidade”.
O segundo aporte está na mais que justa homenagem ao escritor, professor, jornalista e combatente da esquerda palestina, Ghassan Kanafani (Acre, 1936- Beirute, 1972), tornado mártir ao ser assassinado por agentes do Mossad – inteligência externa do sionismo – operando na capital do Líbano. Além da biografia desta referência intelectual, estética e política oriunda da esquerda palestina e do pan-arabismo, somos brindados com o conto A Esposa. Magistral obra que se passa em junho de 1948, quando o invasor decide expulsar as famílias palestinas (a Nakba) contando à época com o apoio de duas superpotências para esta limpeza étnica. As palavras de Kanafani nos levam diretamente à resistência camponesa contra fascistas financiados por banqueiros de diversas origens. No extremo da tragédia humana, a dignidade não cessa. Todo palestino apto a lutar deve ter seu fuzil, e onde estava a arma do novato fedayi no meio da guerra?
“Andou dia e noite através do que restava da Galiléia, procurando seu fuzil por onde passava, perguntando a todos os combatentes que encontrava pelo caminho. Era como se escavasse os rostos e as coisas em busca do fuzil que havia guardado por apenas algumas horas e com o qual nunca havia apontado para coisa alguma”.
A melancolia de perder sua arma sem entrar em combate não cessa o conto. Ao contrário.
“Os quarenta combatentes voltaram à sua aldeia queimada, conseguiram libertá-la e perseguiram os soldados inimigos até a encruzilhada de Damon. Dez deles morreram durante a caçada”. Mas um mártir, uma mártir, shaheeds não morrem, se eternizam.
Tal como a prosa de Ghassan Kanafani, a poesia de Yasser Fayad e a obra de Ahmad Jaradat, Al Khalil, Hebron, e toda a Palestina não se rendem e nem desaparecem.
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