Dois resultados eleitorais menos esperados nas votações presidenciais no Equador e no Peru, realizadas no último dia 11, mostram uma América Latina desafiada a incluir nas suas tradicionais equações de poder a voz política própria dos seus rincões mais profundos e populares. Para o bem ou para o mal, a posição dos setores historicamente ignorados foi determinante para que, no Equador, o voto nulo indígena tenha favorecido a vitória de um candidato ultraliberal e, no Peru, o candidato de esquerda na política e ultraconservador nos costumes, que há três meses não tinha mais que 3% das intenções de voto, chegasse à liderança do primeiro turno.
No caso do Equador, o desafio é compreender o abismo político que dividiu o voto de dois segmentos de esquerda que haviam praticamente dominado o primeiro turno. No Perú, o desafio agora é unificar uma esquerda distanciada por diferenças difíceis de contornar.
No primeiro caso, o resultado é definitivo, pelo menos no plano eleitoral. Dois candidatos do campo popular equatoriano – Andrés Arauz, que concorria pela coalizão Unión por la Esperanza (UNES), apoiado pelo ex-presidente Rafael Correa e Yaku Pèrez, candidato do partido ecossocialista Pachakutik, braço político da Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (Conaie), chegaram bem perto de dividir o segundo turno das eleições presidenciais no Equador e dar a vitória a uma liderança de esquerda, qualquer que fosse o mais votado. Mas quem foi eleito no dia 11 de abril, com 52.48%, foi o banqueiro Guilherme Lasso, representante da direita e adepto da Opus Dei que, no primeiro turno, só se livrou por um triz de ficar fora da disputa seguinte. Um triz que o movimento indígena não engoliu e que determinou o rumo e o resultado das eleições.
Quando o Yaku Pèrez questionou os resultados da urnas, em 7 de fevereiro , ao ser ultrapassado por Guilherme Lasso no final da apuração, por menos de 1% e pediu recontagem, dos votos, o primeiro colocado, Andrés Arauz, comemorava sua liderança isolada. Com 32,70% dos votos, a situação do candidato da chamada revolução cidadã, com quase 13 pontos de diferença sobre os dois em disputa, era confortável, e o candidato indígena em disputa poderia ser até mesmo maior ameaça que o direitista Lasso, por disputar votos no mesmo campo.
Enquanto Yaku despontava como provável segundo colocado, as bases de Arauz já o qualificavam como adversário pouco ou nada confiável, pela oposição declarada ao correismo e seu histórico de posições políticas contra governos de esquerda da América Latina, aumentando o muro que separava os dois projetos. Na campanha, Yaku foi acusado de ter manifestado apoio ao impeachment de Dilma Rousseff, no Brasil, o lawfare contra Cristina Kirchner, na Argentina, e o recente golpe de Estado na Bolívia em 2019. Por outro lado, Yaku é um ativista intransigente na defesa dos direitos ambientais, da floresta e dos povos indígenas, o que o coloca dentro de uma agenda de esquerda urgente, angariando simpatia de jovens e feministas equatorianos, além de setores de esquerda que não querem a volta do correismo. Acusado de corrupção e considerado vítima de lawfare, Rafael Correia e vários políticos de seu governo vivem no exílio, na Bélgica. O ex-presidente teve forte influência no processo eleitoral. As cartas pareciam ganhas, dado o conjunto da resistência popular ao governo do atual presidente de direita, Lenin Moreno.
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No final do primeiro turno, porém, Yaku lutou sozinho – ou melhor, acompanhado de vigílias indígenas noites adentro – por uma contabilização transparente dos votos. Lasso, que a princípio concordou com a recontagem, acabou desistindo de colocar em risco sua vitória apertadíssima. E esse recuo gerou desconfianças insuperáveis de que sua vitória de última hora tenha sido resultado de fraude.
A diferença folgada de Arauz obtida em fevereiro foi diminuindo com o tempo e na tentativa de freá-la, o candidato tentou acordos para a formação de um bloco entre a progressista Revolución Ciudadana, a Conaie e a Izquierda Democrática, correntes que disputaram separadamente o primeiro turno. Mas a unidade em torno de sua campanha não foi possível, especialmente pela rejeição de parcela considerável da população ao correismo.
O movimento indígena decidiu chamar pelo “voto nulo ideológico” contribuindo claramente para os 1.739.870 votos nulos, entre 10.675.362 eleitores. É uma quantidadequatro vezes maior do que a diferença de 435.366 votos entre Lasso, que obteve 4.599.003 votos e Andrés Arauz (47,60 %)
Os resultados oficiais do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) deram vitória ao direitista Guillermo Lasso, do movimento Creando Oportunidades (CREO), em aliança com o Partido Social Cristão (PSC), vencendo Andrés Arauz, candidato à presidência do Equador pela coalizão União para a Esperança (UNES), que congrega Correísmo.
Guilherme Lasso, aos 65, disputou a eleição presidencial pela terceira vez, ficando em segundo lugar em 2013 e 2017, perdendo sempre para o candidato do correismo. Ele o candidato ligado ao Banco de Guayaquil e ao sistema financeiro e comprometido com uma agenda neoliberal para o Equador. Já foi “super ministro da Economia”, poucos meses após o feriado bancário de 1999, e que levou à dolarização da moeda em 2000.
Andrés Arauz, na segunda-feira, fez um apelo “à paz e à reconciliação na base do respeito absoluto aos direitos humanos, A perseguição política deve acabar. Devemos nos tratar como adversários, e não como inimigos.”
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Yaku, por sua vez, avaliou o resultado das urnas como fruto do cansaço da população com a esquerda populista. E sobre a vitória de Lasso, vaticinou, em entrevista à Radio France Internacional: “Acho que essa festa de hoje vai se transformar em seis meses, talvez menos, em decepção e frustração”.
No Peru, uma esquerda imprevisível vai ao segundo turno
Finalizada a contagem dos votos do primeiro turno, a disputa eleitoral no Peru está apenas recomeçando. A fase anterior pareceu mesmo uma loteria, com 18 candidaturas disputando sem grandes diferenças nas pesquisas de intenção de voto, sendo que o preferido poucos meses antes do pleito, de acordo com a pesquisa IPSOS/El Comércio, Yohny Lescano, não chegava a 17% das indicações, seguido por George Forsyth (11,2%) e Rafael López Aliaga (9,3%)
A esquerda peruana apostava suas fichas no crescimento da candidatura de Verónica Mendoza, terceira colocada nas eleições presidenciais de 2016 e que, por isso, tornou-se o principal alvo de ataques dos adversários. Com 8,4%, esteve durante um tempo empatada com as indicações de preferência dadas à Keiko Fujimori (8,6%).
Os resultados mudaram o jogo totalmente, levando, pela esquerda, o professor do meio rural, Castillo, e pela direita, Keiko Fujimori às primeiras colocações, embora os ganhos eleitorais tenham sido modestos, mesmo para os vencedores, que se enfrentarão novamente nas urnas em 6 de de junho.
O processo eleitoral peruano ocorre no pior momento da pandemia. O dia da votação do primeiro turno registrava o maior pico de mortes diárias, mais de 380 segundo dados oficiais. Em uma das regiões mais afetadas pela pandemia, Loreto, as autoridades começaram a abrir valas comuns para enterrar os mortos de famílias sem recursos.
Mesmo com todas as dificuldades, mais de 25 milhões de eleitores chegaram às urnas para um voto obrigatório, sem o qual, por lei, nada é possível na vida cidadã peruana.
Castillo é o candidato que, no domingo, foi votar sobre um cavalo arredio e assustado com a aglomeração de pessoas na zona eleitoral. Com chapeu de palha e usando um lápis como símbolo, foi o candidato azarão lançado pelo partido Peru Libre. Sindicalista vindo da cidade de Chota, na região de Cajamarca, no norte dos Andes, Castillo chegou ao segundo turno com 19,1% – e mesmo assim foi o primeiro colocado. Verônica Mendonza obteve 7,8%, ficando em quinto lugar. A esquerda pode partir para o segundo turno com 26%, um bom capital eleitoral na pulverizada cena política peruana.
Professor primario de 51 años, Pedro Castillo se apresentou como candidato marxista, comprometido com um projeto de Estado socialista, e regulação dos meios de comunicação e destinação de 10% do PIB para a Educação. Mas em contradição com propostas esquerdistas, é antifeminista, contra a discussão de gênero nas escolas, e contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Com discurso radical, disse que poder fechar o Congresso caso este não aceite uma Assembleia Constituinte para substituir a Constituição de 1993, promulgada a partido do autogolpe do ex-presidente Alberto Fujimori (1990-2000), hoje na prisão.
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É justamente a filha do ex-presidente, que quer eleger-se para conceder-lhe indulto e governar o país com ‘a mão de ferro” de seu pai, que irá ao segundo turno contra Castillo. Keiko Fujimori disputa a terceira eleição tentando agarrar-se ao legado do velho Fujimori, que ainda é presente na política peruana, mas tem enorme rejeição nas sondagens de voto. Ela obteve apenas 13,33% dos votos. Mas se conseguir juntar em torno de si a direita peruana – o que não é tranquilo justamente pelo histórico político familiar – e o amplo campo anti-Fujimori se fragmentar, terá chances de dirigir o país.
Pela direita, as candidaturas de Keiko, Hernando de Soto e López Aliaga, chegam a 36%. Já o campo que se formou contra a sombra de Fujimori, que reune Castillo, Verónica, Lezcano e Forsyth, alcança 44%.
As duas eleições deixam questões abertas e difíceis. O Equador precisará prestar mais atenção ao movimento indígena, que não é só de direita ou esquerda, mas parece convencido de que nenhuma posição política vale pagar o preço do meio ambiente que está condenando culturas milenares ao desaparecimento. É também uma luta de longo prazo que pode ser capturada fora para dentro por interesses pragmáticos e imediatistas do neoliberalismo, quando se trata de barrar o caminho dos governos desenvolvimentistas e soberanistas – que se apoiam em grandes obras de impacto ambiental – da esquerda latinoamericana.
O Peru está às voltas com a ameaça da volta do fascismo, Keiko Fujimori não esconde a linha dura com que pretende governar o país. O professor sindicalista do norte dos Andes tem uma agenda complicada e reacionária para as questões de gênero. Há menos de dois meses para as alianças em torno do candidato renegociarem essa agenda, que não pode ser menosprezada nem ignorada a custa dos direitos de parcela da população. O preço da divisão, como mostra o Equador, pode ser alto demais para o campo progressista da região.
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