Precisamos de luta e organização, espírito de luta e mente aguçada. Precisamos de mais e mais livros fundamentais circulando em língua portuguesa.
Albert Hourani, britânico de origem libanesa, escreveu a obra magistral “Uma história dos povos árabes”. Felizmente, o livro foi traduzido para o português. O autor é fidedigno mesmo quando tem passagens polêmicas, e pode servir de livro basilar para a história e até para uma historiografia inicial das populações que, no pensamento decolonial, são denominadas como árabes, arabizadas e arabófonas. O livro hoje é de fácil acesso, têm várias reedições, alguns domínios da internet colocam o PDF em língua portuguesa para ser baixado e está à venda em sebos e livrarias (físicas e virtuais) de todo o país. A obra foi publicada pela primeira vez em 1991 e vem sendo atualizada, ao menos até a versão de 2006, em português.
Difusão ainda maior se encontra no clássico “Orientalismo”, do professor de literatura e palestino Edward Said. De tão potente o livro associou o termo ao conceito e nos fez ver, como descendentes de árabes, a forma como o invasor nos olha e classifica. Desconstruindo a taxonomia colonial ou da primeira globalização do capitalismo mercantil, Said ajuda a dar base para uma mirada crítica, o olhar a nós mesmos, mas jamais através da mira ocular do invasor.
Livros como os acima citados, não nos permitem jamais assistir filmes clássicos do colonialismo, como “Lawrence da Arábia” (Grã-Bretanha/EUA, 1962) como sendo apenas um “filme de aventuras”. Não há como perdoar nossa própria consciência se nos imaginarmos na figura do oficial de inteligência colonial, Thomas Edward Lawrence e sua versão de síntese de inteligência aplicada na obra “Os sete pilares da sabedoria”. Se o personagem de Harrison Ford na franquia “Indiana Jones” já dá ânsia de vômito, ainda pior é sua versão real, como a deste militar britânico cheio de artimanhas, que leva o Mundo Árabe ao desastre consecutivo – apoiando o famigerado Acordo Sykes-Picot – e entregando os “aliados” hashemitas à própria sorte na Batalha de Maysalun (julho de 1920). Se os ingleses fizeram isso com os “amigos”, o que não fariam e fazem com os inimigos? Ou melhor, como confiar nos colonialistas e cruzados após ler essas obras?
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Eis a relevância das traduções, se não a única, de maior aplicação na luta política. No ano de 1986, quatorze anos após o seu martírio, a obra de Ghassan Kanafani “Contos da Palestina: o povo sem terra” foi traduzida e publicada no Brasil. Eram os anos mais duros após o massacre de Sabra e Chatila (setembro de 1982), a retirada dos fedayin do Líbano e a operação “perna de pau” com o bombardeio da sede da OLP, em Túnis, Tunísia (outubro de 1985). Ainda não havia iniciado a primeira intifada. No país de nossos ancestrais vivia-se a vergonha da Guerra dos Campos, com o setor da resistência ainda muito fragmentado. As frases cinematográficas de Kanafani nos colocam dentro da luta palestina, de corpo, mente e alma.
Antes da derrota no Líbano, em 1981, um pequeno editor carioca trazia alento para o espírito militante da colônia árabe. Róbson Achiamé, paladino à frente da Achiamé Editora, traduziu para o português a coletânea “Poesia Palestina de Combate”. Os poemas foram selecionados por Abdellatif Laâbi e seu impacto na militância foi mais eficaz que os aviões de caça IAI-Kfir jogando bombas sobre mulheres e crianças em campos de refugiados. A obra termina com um texto seminal contra a normalização imposta pelos sionistas nos territórios palestinos ocupados em 1948 e, depois, em 1967. Nos versos a luta se mantém e o apoio da diáspora é reforçado.
“Aqui sobre vossos peitos, persistimos / como uma muralha em vossas goelas / como cacos de vidro imperturbáveis/ e em vossos olhos, como uma tempestade de fogo”. Como não se abalar em cada verso de Tawfik Az-Zayad, como não reverenciar essa obra em língua portuguesa? A importância de versos de luta e compromisso, tão sólidos como as oliveiras de toda a Cananeia existindo a mais tempo do que qualquer invasor europeu.
Nesta segunda década do século XXI, tivemos a tradução do livro de Nur Masalha “Expulsão dos palestinos: o conceito de ‘transferência’ no pensamento político sionista, 1882-1948”. Essa obra, publicada originalmente em 1992 (já na sexta reedição), cujo autor é palestino nascido na Galileia ocupada, é uma leitura fundamental tanto para a descendência árabe no Brasil como para os milhões de cidadãos e cidadãs brasileiras que apoiam a libertação da Palestina. Lançado em conjunto pelo Fórum Latino Palestino, o Monitor do Oriente Médio e a editora Sundermann, marca um debate de profundidade sobre o pensamento estratégico do inimigo que desumaniza os árabes da Palestina. É como entrar na mente do facínora para entender como, desde o começo do projeto colonial sionista, “o problema demográfico” estava presente na racionalidade dos invasores que se articularam com o Império Austro-Húngaro, com o Império Otomano (em especial no início do século XX e com a ascensão dos Três Pashás), com o Império Britânico e os Estados Unidos (herdeiro do anglo-sionismo). Limpeza étnica planejada como política de formação de um Estado alienígena, baseado em mitologias de textos mal traduzidos e milenarismos de duvidosas origens.
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O mais recente lançamento, “Hebron, a cidade impossível”, do professor palestino Ahmad Jaradat (Fedayin Editora, Florianópolis, 2021), já resenhado inclusive por este que escreve, marca o período de bons lançamentos que certamente ajudarão a formar novas gerações de militantes. Sempre presente a ideia de que a ocupação é desumana, e o cotidiano militarizado tentará normalizar o Apartheid como forma de vida, quiçá de sobrevivência. O impacto dessa literatura que combina rigor e compromisso, cuidado estético e mergulho nos processos reais, é muito grande. Livros não formam apenas intelectuais. Por vezes com alguma sorte, formam intelectuais engajados. Livros formam a diáspora, reformam as pertenças e a vontade de lutar.
Se as embarcações fenícias cruzaram o Mediterrâneo e o Atlântico e abordaram a costa de Pindorama com a bandeira púrpura do norte da Cananeia, por que nosso esforço político e militante não pode – e deve – fazer o caminho inverso? Somos 18 milhões para quê então? A literatura árabe e, em especial, os escritos que tratam da Palestina Ocupada e sua saga de libertação, nos guiam nesse sentido. Se as obras completas de nosso historiador maior Ibn Khaldoun ainda não ganharam envergadura em português, devemos caminhar nesse sentido.
O poema do palestino Mahmud Darwich, “Carteira de identidade”, expõe as vísceras do que precisamos saber, viver e nos familiarizar, mesmo que na diáspora e do lado de cá do Atlântico.
“Registra-me, sou árabe, meu nome é muito comum e sou paciente em um país que ferve de cólera / minhas raízes, fixadas antes do nascimento dos tempos, antes da eclosão dos séculos /…e meu avô era camponês”.
O poema narra esse povo de camponeses, assim como os nossos bisavós mascates. Que o esforço de literatos e dessas obras fundamentais façam com que nos conheçamos cada vez mais, ajudando a organizar a diáspora na resistência às agressões do inimigo e seus aliados imperialistas. As palavras são tão potentes e a ideias tão concretas como a cimitarra de Al-Nasir Salah al-Din. Precisamos da mesma tenacidade das carroças dos mascates sertão adentro. Que venham mais livros e luta organizada.
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