Difícil falar dos conflitos políticos da última década na América Latina sem considerar o impacto do chamado lawfare, assim como é impossível olhar para a década de 70 na região sem o filtro das ditaduras militares .
O termo do inglês, hibridismo de law (lei) e walfare (guerra), indica o uso malicioso do sistema judiciário para desestabilizar e derrotar um adversário no poder – e ocupar seu lugar. Também é conhecido como guerra jurídica ou guerra híbrida. Sua aplicação no continente mirou povos em luta por democracia, onde justamente o Direito e a Justiça são ferramentas preciosas e o assalto armado ao poder é um trauma ainda recente, deixado pelos regimes militares.
Com variados usos desde os anos 50, o sentido da palavra lawfare como é empregada hoje foi precisado pelo general da Força Aérea norte americana Charles Dunlap, em 2008,
como “a estratégia de usar – ou abusar – da lei como um substituto para os meios militares tradicionais para atingir um objetivo operacional”.
Os casos são inúmeros. Em 2012, três anos após a já incrédula e repentina deposição do presidente Manuel Zelaya, de Honduras, a estratégia foi empregada na prática contra o presidente eleito Fernando Lugo, do Paraguai, deposto segundo uma interpretação inusitada da lei, de um dia para o outro. O objetivo operacional, no caso, foi a retomada do poder pela direita.
Em poucos anos, o lawfare atingiu o coração da política no Brasil, com o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e um processo que se aprofunda até hoje nos desmontes do Estado democrático.
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O lawfare parece eclodir com uma força irrefreável, com envolvimento do Parlamento e apoio de parcela da população, refutando legitimidades eleitorais e tentando impor uma nova normalidade baseada no controle da política e alinhamento com a extrema direita internacional. Mas não há normalidade que resulte de golpes de Estado, que não seja artificialmente sustentada pelos acordos da guerra híbrida. Daí que outro elemento fundamental nesses processos é a facilidade do controle financeiro sobre a mídia, propagadora do discurso de um pretenso combate à corrupção que alimenta processos nos tribunais e caça às bruxas de forma totalmente seletiva.
Práticas de lawfare estiveram presentes no uso de instrumentos judiciais para impedir, por exemplo, que o ex-presidente Lula concorresse à presidência do Brasil em 2018 – barrado por sentenças judiciais suspeitas da operação Lava Jato, hoje anuladas – ou para impedir que o ex-presidente do Equador, Rafael Correa, exilado na Bélgica concorresse à vice-presidência, na recente eleição em seu país. Na Bolívia, a guerra híbrida forçou a renúncia do ex-presidente Evo Morales, no final de 2019, e colocou em seu lugar a autodeclarada mandatária Jeanine Áñez. Até o golpe ser derrotado nas eleições, após um ano de revolta social.
É sobre essa intromissão dolorosa nos projetos de poder no continente, interesses internacionais em jogo e suas consequências, que mais de uma centena de entidades, movimentos e redes ativas na discussão do sistema de Justiça, democracia e direitos tèm se debruçado, confluindo para organizar um fórum internacional temático que vá além do diagnóstico. O desafio do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD), programado para setembro de 2021 no Brasil – ou em versão online – é estabelecer uma ponte entre as batalhas travadas no âmbito dos sistemas de justiça – por reformas e proteções necessárias – e as lutas que se dão no seio da sociedade por direitos políticos e sociais, todos ameaçados na ponta desses novos modelos de golpes de estado.
São iniciadoras do processo conjunto pelo Brasil entidades como Coletivo Transforma MP, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Associação de Juízes para a Democracia (AJD), Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia, Advogadas e Advogados Públicos pela Democracia (APD) e Movimento Policiais Antifascismo (PAF), ao lado de organizações que integram o Conselho Internacional do FSM em diversos países.
Para as entidades organizadoras do FSMJD, “ as consequências do uso do Direito para fins políticos são absolutamente graves, comprometendo conquistas civilizatórias postas nas constituições democráticas”, exigindo uma grande confluência de esforços para cercar e combater esse desmonte desde a origem. E para reverter seus resultados na ponta.
Bem ou mal, sistemas democráticos representam uma fronteira de proteção a recursos e setores estratégicos fundamentais para o funcionamento das sociedades, mas que são cobiçados pelo capital e o sistema financeiro. Do desabastecimento da saúde no Brasil, incapaz de assegurar vacinas e sedativos suficientes para enfrentamento à pandemia, às queimadas na Amazônia, com recorde de desmatamento registrado no mês de março, tudo tem a ver com o assalto à democracia,
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