Arrancada nas ruas, a condenação do policial Derek Chauvin pelo assassinato de George Floyd em 25 de maio de 2020 mostra o caminho para que essa vitória protagonizada pelo povo negro não seja exceção, mas regra: unir os oprimidos e explorados em todo o mundo contra um sistema em que o racismo é estrutural. Como costuma afirmar a jornalista e moradora da favela da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, Gizele Martins, “se eles criminalizam nossas vidas e internacionalizam a militarização, nós internacionalizamos a luta”.
Ela enfrenta cotidianamente esta realidade em sua própria comunidade. Somente nesta quinta-feira, 22 de abril, foram três mortos pela violência policial. Os moradores do Complexo do Alemão também viviam mais um dia de terror imposto pelas forças do Estado. Nos últimos nove meses, como revela reportagem no portal UOL, as operações nas favelas fluminenses mataram cerca de 800 pessoas, apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) restringi-las durante a pandemia.
Nos Estados Unidos, a jovem Ma´Khia Bryant, de 16 anos, foi assassinada a tiros pela polícia de Columbia enquanto o povo negro arrancava a condenação no caso Floyd. Daunte Wright, 20, foi outra vítima fatal em meio ao julgamento no mês de abril. Na Palestina sob ocupação, Atef Yussef Hanaysheh, 42, foi assassinado pelas forças sionistas em protesto contra a colonização no dia 19 de março último. Seis crianças palestinas foram assassinadas somente em 2020 e outras 1.048 foram feridas entre outubro de 2019 e novembro do ano passado, como denunciam as Nações Unidas. Em todos os casos, a impunidade grassa.
Mesmas armas
Convidada pelo Comitê Nacional Palestino do BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel e outras organizações para visitar a Palestina ocupada em 2017, Gizele pôde ver de perto as mesmas técnicas, treinamentos e tecnologias testadas antes pelo Estado sionista sobre os corpos palestinos e depois vendidas para o genocídio do povo pobre e negro no Rio de Janeiro e Brasil afora.
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É o que relatou durante o 3º. Julho Negro, em 2018: “O Exército, quando invade a favela e em suas operações nas periferias, faz os chamados ‘fichamentos’. Nas entradas e saídas de moradores das favelas, eles os revistam, pegam suas identidades, pedem para que fiquem esperando, sentados em uma cadeira […]. Eu vi algo muito parecido só que de uma forma – óbvio – muito mais intensa na Palestina, em que os moradores em seus locais, em suas aldeias, nos seus territórios, são obrigados a passar pelos checkpoints [postos de controle]. Outra semelhança é a presença cada vez maior dos carros blindados, que aqui no Rio a gente chama de ‘caveirões’, dentro de nossos territórios empobrecidos, que são territórios negros, nordestinos e indígenas. […].”
Foi o que também constataram palestinos que se irmanaram nos atos por justiça a George Floyd, após seu assassinato. “O que estamos aprendendo? Quantas pessoas devem morrer até encontrarmos justiça? […] Não posso diferenciar se estou falando da Palestina ou da comunidade negra e indígena daqui”, declarou ao Middle East Eye um deles, o ativista Mohammed, que cresceu em um campo de refugiados na Cisjordânia, Palestina ocupada, e vive em Minneapolis. “O uso seletivo de agressão é muito semelhante”, afirmou a palestino-americana Mariam El-Khatib na mesma reportagem, que observou similaridades também na repressão aos protestos: “Quando eles começaram a usar gás lacrimogêneo contra os manifestantes [em Minneapolis], foi para mim como um flashback na Palestina (…).” A matéria aponta “o uso quase diário por Israel (…), com pesquisadores em 2018 rotulando o campo de refugiados de Aida, na Cisjordânia ocupada, como ‘o lugar mais gasoso do mundo’”.
Não são similaridades ao acaso. À sequência do assassinato de Floyd, conforme o Middle East Eye, “ativistas das mídias sociais começaram a apontar que cerca de 100 policiais de Minnesota haviam participado de treinamento em um consulado israelense com suas autoridades em 2012”.
Isso não é novo. Desde a colaboração com ditaduras na América Latina e com o apartheid na África do Sul, a exportação de técnicas e tecnologias militares sionistas se aprofunda nos anos 1990, após os desastrosos acordos de Oslo. Assinados em setembro de 1993 entre a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e Israel, sob a falsa propaganda de que estaria aberto o caminho para a paz, representaram, como escreve a jornalista Naomi Klein em seu livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo de desastre”, oportunidade ao Estado sionista se apresentar como “uma espécie de shopping center de tecnologias de segurança nacional”. Na obra, a autora afirma que, ao final de 2006, ano da invasão israelense do Líbano, a economia da ocupação, baseada fortemente na exportação militar, expandiu-se vertiginosamente (8%).
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Na década, informa a reportagem do Middle East Eye, “segundo a Anistia Internacional, centenas de policiais norte-americanos passaram por treinamento em Israel, tanto em viagens privadas quanto públicas, enquanto milhares foram treinados por forças israelenses nos Estados Unidos”.
Luta internacional
Palestinos e palestinas têm denunciado essa parceria da morte em que a colonização sionista se alimenta do sangue pobre, negro e indígena ao redor do mundo. Têm também dado demonstração de solidariedade. Em protestos, colocavam lado a lado as fotos de Floyd e o jovem autista palestino Eyad Hallad, 32 anos, assassinado pelas forças de ocupação também à época. Em várias postagens nas redes sociais, reproduziam imagens de palestinos sendo sufocados por militares sionistas da mesma forma. E levantavam a bandeira: “Vidas palestinas, negras e indígenas importam.”
Imagem de George Floyd pintada no muro do apartheid na Cisjordânia imortaliza a aliança entre os oprimidos e explorados. Em meio a uma das maiores injustiças da era contemporânea – a contínua Nakba (catástrofe palestina consolidada com a formação do Estado de Israel em 1948 mediante limpeza étnica planejada) –, palestinos dão exemplo de consciência de que essa luta é internacional e coletiva. Um símbolo dessa causa da humanidade.
Ao lado de sua resistência heroica e histórica, a aliança dos oprimidos e explorados é o caminho para pôr abaixo sistema que em pleno século XXI impede milhares de respirarem, viverem em terras que sempre foram suas e sustenta o enclave militar sionista no coração do Oriente Médio. Para que todos e todas sejam livres. E a justiça que ora é celebrada dos EUA ao Brasil e Palestina ocupada não mais seja exceção, mas represente o início do fim da colonização e apartheid sionistas, do racismo intrínseco ao capitalismo.
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