No último dia 19, o respeitado veículo de comunicação Monitor do Oriente (MEMO), com edição em português no Brasil, noticiou na edição em língua inglesa acerca da participação do presidente palestino Mahmoud Abbas em evento virtual do grupo estadunidense pró-Israel J. Streeet, com o seguinte título: “Abbas tells US advocacy group that Israel is on path to apartheid” (Abbas diz a grupo de defesa dos EUA que Israel está a caminho do apartheid).
O título não chega a dar um tom político, mas o que circulou em mídias sociais apimentou a notícia: “Mahmoud Abbas sai em auxílio do regime israelense e diz que Israel ainda não é um regime de apartheid, ‘está a caminho de sê-lo’, negando relatores da ONU, especialistas e ONGs (incluindo israelenses)”. Esta é a tradução do texto que acompanhou o link.
O texto informou menos do que poderia sobre o evento, mas propiciou bom pretexto político para ancorar uma dada narrativa, um tanto explosiva. E aqui não se trata de aferir os acertos ou erros políticos de Abbas, perfeitamente escrutináveis pelos atores políticos da cena palestina, e para além dela, mas de conhecer a inteireza factual daquilo que deveria ter sido noticiado, contrastando com o que foi noticiado com pelo menos uma distorção.
Além de curto e incompleto quanto ao evento, o texto passou ao largo da nevralgia da manifestação do presidente palestino. Os leitores não souberam, por exemplo, sobre o que e quem é J. Street, um grupo de lideranças pró-Israel nos EUA que alega promover a “paz” entre palestinos e israelenses. Por outro lado, ainda que involuntariamente, permitiu aos interessados um “cavalo de Tróia”, talvez para desembarque no processo eleitoral em curso na Palestina, que tem sua primeira etapa (de três) a eleição para o parlamento, dia 22 de maio.
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O cavalo de batalha foi possível a partir desta passagem no texto: “Embora Abbas tenha alertado que Israel está a caminho de se tornar um estado de apartheid se não concordar com uma solução de dois estados com os palestinos, um importante grupo israelense de direitos humanos concluiu que o estado sionista já ultrapassou esse limite.” Daí às muitas possíveis interpretações há um mundo de oportunidades!
Mas o que disse, então, Abbas sobre o apartheid israelense? O texto lido pelo presidente palestino, que, em tese ao menos, instruiu o redator do MEMO, acusa Israel de promover políticas de apartheid ao afirmar que “o apartheid também se tornou a única marca registrada das práticas do governo israelense e seu regime opressivo e ilegal na Palestina ocupada.” Mais preciso, impossível.
E antes desta passagem, Abbas disse algo incomum, até mesmo aos mais versados na Questão Palestina. Para ele, “países com poder militar não devem ser permitidos, ou dado (a estes) o direito de ocupar outros povos e suas terras, e criar novas realidades no terreno.”. Não se ouve, ao menos nestes termos, que é preciso proibir países (clara referência a Israel) de terem poderio militar!
Há outras passagens nesta manifestação presidencial jornalisticamente muito interessantes, que soam a autocrítica quanto a Madri e Oslo, que levaram aos acordos de paz, por muitos criticados por não apenas não terem levado à paz, mas por ter havido, neste período de conversações, o aumento da ocupação.
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Abbas citava os 30 anos das conversações multilaterais de Madri e os 25 anos da implementação (1995/1996, após sua assinatura, em 1993) dos chamados Acordos de Oslo quando afirmou: “Infelizmente, nem o processo de paz nem os Acordos de Oslo levaram à coexistência e às boas relações entre a Palestina e Israel nas fronteiras pré-junho de 1967. Em vez disso, as crescentes máquinas militares israelenses continuaram a oprimir nosso povo e proteger os colonos israelenses, que diariamente cometem atos violentos e extremistas contra civis palestinos desarmados. Apoiados pelas autoridades militares israelenses, os colonos são constantemente capacitados para roubar território palestino e construir mais assentamentos.”
Numa só frase, o líder palestino, mesmo diante de plateia apoiadora de Israel, descreveu criticamente a realidade fática desde Madri e Oslo. De um ponto de vista noticioso, talvez este fosse o principal “gancho”, aliado, claro, à referência de Abbas ao apartheid de Israel na Palestina.
Há quem acuse os jornalistas de forçarem uma notícia, um “gancho”, o que às vezes ocorre. Entretanto, há vezes em que o noticiado, aqui Abbas, oferece, nas entrelinhas, o que de fato quer dizer. Lideranças experientes não dão “bola fora”, ou não costumam dar. E considerando a bagagem de Abbas, o público para o qual falava e o tema que abordava, o que disse sobre os acordos de paz não pode soar a mero deslize.
E ainda que se busque, na totalidade da manifestação presidencial, uma “coerência” entre os parágrafos para que, num “todo” idealizado, se justifique a negligência diante do “gancho” principal, não há como explicar a omissão da acusação clara de Abbas quanto a Israel ter se tornado um regime marcado pelo apartheid. Assim como é difícil aventar que, aos que ouviram Abbas ou leram sua manifestação, lhes tenha passado em branco suas considerações críticas dirigidas a Madri e Oslo.
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Do presidente palestino parecem exigir, alguns, mais do que se exigia da mulher de Cezar, aquela à qual não bastava ser honesta, pois tinha também que parecer (ser e parecer). Ou seja: dele se pediu que falasse, ele falou sem rodeios e, ao final, se publicou não sua eventual omissão, mas que teria falado em contrário.
Quanto ao que importa, Abbas deu Israel por um regime com práticas de apartheid e, de lambuja, nos fez, quando pouco, suspeitar que denunciou a ineficácia do que foi inaugurado por Madri e Oslo. Os leitores mereciam esta notícia, mas acabaram recebendo bem menos do que isso. Agradados ficaram os que selaram e cavalgaram aquele cavalo que levou Tróia a seu fim.
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