No início do corrente mês de abril, os meios de comunicação noticiaram a assinatura de um abaixo-assinado por membros da comunidade islâmica do Brasil, solicitando, entre outras reivindicações, o impeachment do presidente Jair Bolsonaro, considerado pelos assinantes do documento como o principal responsável pela tragédia da pandemia da covid-19 no Brasil, em virtude de suas atitudes negacionistas perante a crise sanitária que assolou o país e o mundo. Este abaixo-assinado foi organizado por uma organização que se intitula “Comitês Islâmicos de Solidariedade”, e foi anunciado e divulgado quando já contava com cerca de 600 assinaturas. As assinaturas continuaram abertas por um tempo depois, mas a articulação toda e o impacto foram conseguidos com o número inicial de assinantes.
Esta ação política da comunidade islâmica ganhou uma repercussão relativamente ampla nas mídias escrita e falada e nas redes sociais. Foi um fato que chamou a atenção, independentemente de concordar ou discordar do conteúdo do abaixo-assinado. Mas quais são os motivos para tanta atenção a um documento político que reuniu menos de mil assinaturas? De fato, este manifesto ganhou repercussão por seu simbolismo muito mais do que pela quantidade de assinantes. Trata-se da primeira ação política bem organizada e articulada da comunidade islâmica brasileira desde há muito tempo. Quanto tempo? Talvez desde a Revolta dos Malês, protagonizada por escravos africanos muçulmanos na Bahia em 1835. Durante a maior parte dos séculos XIX e XX, a comunidade islâmica enquanto comunidade esteve ausente, como bloco político, da vida política do Brasil. Com este abaixo-assinado, temos pela primeira vez no século XXI uma atuação islâmica política no Brasil.
Uma análise dos nomes dos 600 assinantes deste documento islâmico histórico revela que são, em sua esmagadora maioria, muçulmanos brasileiros. Há notável escassez de nomes e sobrenomes árabes entre os assinantes. Isso significa que o documento foi articulado e protagonizado pelos muçulmanos convertidos, os chamados “revertidos” pelos teólogos muçulmanos. Este fato chama muito a atenção, uma vez que os árabes e descendentes, que são o grosso da comunidade islâmica no Brasil, não tiveram protagonismo nesta ação. Com certeza, isso não é mera coincidência. Há explicações plausíveis para tentarmos entender este fato. Vamos lá.
O manifesto enfatizou o conceito de “ummah”, palavra citada deste jeito, no seu original árabe. A palavra “ummah” significa nação ou comunidade, e deriva da raiz árabe para a palavra mãe “umm”. Fato semelhante ocorre na língua portuguesa: a palavra pátria é derivada da raiz latina para a palavra “pai”. Ummah, em se tratando de Islam, não é um conceito vago ou uma palavra qualquer. Trata-se de uma identidade e um sentimento de pertencimento que todo muçulmano tem ou, pelo menos, deveria ter. Ao evocar a palavra “ummah”, os assinantes demonstraram o seu sentimento de pertencer à nação islâmica do mundo inteiro, mesmo sendo cidadãos brasileiros. Neste abaixo-assinado, os muçulmanos brasileiros deixaram bem claro que além de pertencerem à nação brasileira, tendo participação política, também pertencem à nação do Islam.
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Um outro fato importante no documento é a citação do profeta Muhammad, que as bênçãos e a paz de Deus estejam sobre ele. O profeta, mensageiro e fundador do Islam foi citado por ocasião de um “hadith” (tradição do profeta), no qual é dada uma recomendação aos muçulmanos de como proceder em caso de um surto de epidemia. As recomendações deste hadith aos fiéis muçulmanos são de aplicar o confinamento e o isolamento, medidas que vem ao encontro dos ditames da ciência e medicina contemporâneas. Ao citar o profeta Mohammad, com o tradicional “que as bênçãos e a paz de Deus estejam sobre ele, o documento islâmico de dimensão nacional revela que seus idealizadores e assinantes professam a sua fé mesmo em tempos de fascismo e intolerância no Brasil.
Mas ainda não respondemos ao questionamento acima levantado sobre a quase não-participação de árabes muçulmanos no documento. Quisemos dar uma idéia de como pensam os idealizadores do documento. Em sendo convertidos ao Islam, ou seja, sem procedência dos países árabes, estes muçulmanos, na maioria das vezes, estudaram o Islam para tornarem-se adeptos com convicção. Em contrapartida, muitos dos árabes muçulmanos acabaram afrouxando o seu apego aos preceitos e mandamentos do Islam, buscando a sobrevivência e a prosperidade. Com isso acabaram abrasileirando-se e adotando o estilo de vida do grosso da classe média. Está bem. Mas o que isso tem a ver com o abaixo-assinado? Bom, tem tudo a ver. Vamos tentar explicar.
Nas eleições que levaram Bolsonaro ao poder, boa parte dos muçulmanos árabes acabou votando nele. O que pode parecer uma simples opção política ou preferência partidária é muito mais do que isso no caso da comunidade islâmica. Na época, os líderes da mais importante sociedade islâmica de São Paulo (e talvez do Brasil), a da Mesquita Brasil, declararam apoio explícito a Bolsonaro. São brasileiros descendentes de árabes, com nomes e sobrenomes árabes. E o que isso significa? Significa que os líderes de uma das mais importantes sociedades islâmicas no Brasil apoiaram um candidato que é declaradamente anti-minorias. Na campanha do Bolsonaro, foram vistos cartazes islamofóbicos em lugares como a Av. Paulista. Mas nem isso foi capaz de demover muitos muçulmanos da comunidade árabe brasileira da ideia de votar no Bolsonaro. Líderes da comunidade islâmica brasileira, uma minoria (estimativas dizem que muçulmanos não chegam a 1% da população brasileira) votaram num candidato anti-minorias!
Um fato bem paradoxal foi a vitória de Bolsonaro sobre Haddad na embaixada brasileira em Beirute, capital do Líbano. Fernando Haddad, descendente de libaneses ortodoxos da região do Vale do Bekaa, foi derrotado na terra dos seus ancestrais! No mínimo, é um fato paradoxal. O caro leitor há de concordar comigo. E o paradoxo torna-se pior ainda quando lembramos que Bolsonaro nunca escondeu a sua simpatia pelo sionismo e o seu apoio irrestrito e incondicional ao Estado de Israel, arqui-inimigo de árabes e muçulmanos! Ou seja, boa parte dos muçulmanos líbano-brasileiros, além de votarem contra um quase conterrâneo, acabaram ajudando a eleger um aliado dos seus inimigos sionistas!
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Em sendo em sua maioria da classe média, boa parte dos muçulmanos árabes e descendentes no Brasil acabou seguindo a onda da classe média brasileira, e deixando de lado preceitos e conceitos islâmicos como “ummah”. O que o brilhante Jessé Souza descreveu em sua importante obra, o best seller ” A Elite do Atraso”, sobre o comportamento da classe média brasileira que demonizou a esquerda e elegeu um fascista de idéias tirânicas, aplica-se à parcela da comunidade árabe-islâmica que elegeu Bolsonaro.
Voltando ao importante e recente manifesto da comunidade islâmica, percebemos que os convertidos ao Islam têm uma adesão maior aos preceitos islâmicos do que os imigrantes e descendentes que são muçulmanos por tradição. É nítido que o entusiasmo dos convertidos é maior, fato que acabou refletindo-se na confecção deste manifesto marcante. Seria estranho que aqueles que ajudaram a eleger o Bolsonaro organizassem uma ação política que solicitasse o seu impedimento. Os convertidos brasileiros, que aderiram ao Islam por estudo e devoção sincera, superaram os imigrantes e seus descendentes no sentido de pertencimento à ummah islâmica. Um outro ponto a considerar é que o convertido, por ser brasileiro há gerações, acaba tendo uma sensação maior de pertencimento ao Brasil do que o imigrante ou descendente.
Vale lembrar aqui que mesmo que tenhamos alguns muçulmanos que conseguiram eleger-se para cargos políticos no Brasil, na maior parte das vezes eles agem como membros comuns da sociedade brasileira, ou seja, sem colocar nenhuma menção ou referência ao Islam no seu discurso e prática. Houve também, em diferentes épocas, manifestações e passeatas das comunidades muçulmanas e árabes no Brasil, mas todas voltadas para temas relacionados a países árabes e islâmicos, como ocorreu em julho de 2006, quando a comunidade libanesa de São Paulo organizou uma passeata na Av. Paulista em protesto à ofensiva militar israelense contra o Líbano. Mas nunca houve, até o momento, uma organização islâmica brasileira para assuntos da política interna do Brasil. Daí, então, provém a importância deste manifesto. Os políticos de origem árabe que chegaram aos cargos mais altos no Brasil são em sua maioria cristãos, como, por exemplo, Michel Temer e Paulo Maluf.
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