Desde 28 de abril, o povo colombiano está nas ruas, desafiando a repressão, a pandemia e a aposta do governo de Ivan Duque na militarização das ruas. O estopim armou-se antes, dia 20, quando o presidente apresentou o malfadado projeto de reforma tributária ao Congresso da República, e levantou o país contra si. A reação também lhe deu pretexto para colocar a polícia e o Exército para reprimir protestos em todo país. No primeiro dia de paralisação, um policial assassinou Marcelo Agredo Inchima, esportista de 17 anos, que participava dos protestos. As mortes continuaram ostensivamente.
A Colômbia caminha para as eleições parlamentares, daqui a dez meses, e para as presidenciais em um ano e nada indica que o partido de Ivan Duque tenha chances de ser reconduzido pelas vias eleitorais. Suas credenciais são ligadas ao ex-presidente Álvaro Uribe (2002 a 2010), cuja política de enfrentamento às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) foi de confronto e eliminação, antes do processo de paz iniciado entre a organização e o presidente seguinte, Juan Manuel Santos, em 2016. Com a eleição de Iván Duque, em 2018, a política uribista de extrema direita voltou ao poder na Colômbia, em meio a denúncias crescentes de compra de votos, vínculos do mandatário com o crime organizado, o narcotráfico e o paramilitarismo.
Em 1º de Maio, os militares foram convocados contra os manifestantes, uma ostentação de força em pleno Dia do Trabalho, quando a insistência no projeto de reforma já se mostrava insustentável. No dia 2 de maio, quinto dia de protestos, o governo foi obrigado a retirar o projeto, um gesto apenas paliativo frente à revolta popular crescente. De acordo com o Comitê Nacional de Desemprego da Colômbia, o país alcançou nesse dia a marca de 1.089 casos de violência policial e 27 manifestantes assassinados, 12 deles em Cali, capital do departamento de Valle del Cauca, onde os militares entraram juntamente com o Esquadrão Móvel Antimotim (ESMAD).
Com as redes sociais, as mortes em Cali deixaram de ser estatísticas e passaram a ter ganhar rostos e histórias de jovens tentando mudar o destino do país. Em um dos casos, a polícia disparou contra a cabeça de Nicolás Guerrero, um artista de 22 anos que gravava os protestos e agonizou em meio a um grupo de manifestantes. No dia seguinte, 3 de maio, o estudante universitário Kevin Antoni Agudelo, também de 22 anos, participava de um evento noturno para acender velas aos mortos e foi atingido por tiros de fuzil. Um homem e sua namorada o colocaram em uma motocicleta e o levaram para um hospital. “Mas ele já estava morto”, relatou o pai do jovem ao El País. “Meu outro filho está arrasado aqui em casa por causa do que fizeram ao irmão dele”, contou chorando. “Eles estavam acendendo uma vela pacificamente e se protestavam é direito, porque têm direito de lutar por um país melhor e não que lhes feche a porta.
As mulheres também denunciam casos assédio sexual pela polícia e iniciaram campanha para relato de abusos.
Si eres víctima de abuso policial en el marco de la protesta social escríbenos. #CuidémonosMientrasLuchamos pic.twitter.com/Dq1K0jJZRy
— Lazos de Dignidad (@FLazosDignidad) May 5, 2021
Cali não está sozinha na resistência. Protestos acontecem na capital, Bogotá, em Medellín, Pereira, Manizales, Neiva, Pasto, Bucaramanga, Pereira, Palmira (Valle del Cauca). De todos esses lugares, chegam relatos da repressão. Os balanços, agora já ultlrapassam 30 assassinatos, 87 desaparecidos e 814 detenções arbitrárias, além de ataques a observadores internacionais.
Trabalhadores da ONU, ameaçados e atacados, precisaram ser protegidos em fuga por escudos humanos voluntários. A oposição compara as ações do Estado colombiano às da Junta Militar golpista em Myanmar. A jornalista brasileira e articulista do MEMO, Soraya Misleh, compara o sofrimento dos colombianos ao dos palestinos sob ocupação israelense.
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ES URGENTE. Que pare la masacre en Cali. Los videos que recibimos de Siloé son de terror. Esmad dispara a los manifestantes. El Alcalde llama a una reunión de urgencia a las autoridades locales. Lo que tiene que exigir es que se detenga esta barbarie. #DuquePareLaMasacre pic.twitter.com/Caw6cJaO81
— Tatiana Pérez @telesurtv (@Tatiana_teleSUR) May 4, 2021
O povo pede ajuda, mas para quem? Se é o Estado que ataca. O povo de Cali está à própria sorte, diz Tatiana Péres, da Telesur
Lideranças partidárias se somam às mobilizações indígenas, jovens e sindicais, reforçando chamados à unidade. O oponente de Ivan Duque em 2018, Gustavo Petro, e pré-candidato para 2022, propôs nesta quinta-feira uma marcha nacional unificada.
Les propongo hacerla si decretan la conmoción interior. Les propongo que todo el sur, el occidente, el centro oriente, el centro y el norte salgan de sus casas a marchar.
Les propongo hacer esa fiesta en honor de tanto joven que sale en Colombia a luchar por otro futuro mejor.
— Gustavo Petro (@petrogustavo) May 6, 2021
Que sea como la que hizo Jorge Eliécer Gaitán en 1.948, llamada: "La marcha del Silencio" la más grande marcha contra la violencia registrada en COL hasta ese momento. pic.twitter.com/tPK95cV5bm
— Celso Tete Crespo 🇨🇴 (@elsemblante) May 6, 2021
Os manifestantes entenderam o significado do uso das forças do Estado contra o próprio povo, despertando um sentimento que vai além da oposição ao governo de Duque ou à sua reforma, mas a uma velha história de dominação estrangeira. A Colômbia carrega as marcas da violênta colonização espanhola no passado; da adoção da Doutrina de Segurança Nacional dos Estados Unidos contra o inimigo interno durante os anos 60; do Plan Colômbia, que armou o país até os dentes na virada do milênio; e a dizimação de indígenas acusados de terrorismo na era uribista.
É significativo que os indígenas da comunidade Misak del Cauca tenham se levantado para derrubar (pela segunda vez) a estátua de Sebastián de Belalcazar em Cali, o espanhol que exterminou milhares de indígenas para submeter a população ao domínio colonial hispânico. O governo tem se preocupado inclusive em proteger outra estátua, a do próprio Cristóvan Colombo, que ironicamente dá nome ao país.
A resistência do povo colombiano indica a consciência nacional de que o governo não está agindo apenas para debelar o protesto, mas para medir forças com a população pela normali\ação do medo e da repressão militar altamente equipada e treinada, em uma política associada a ações de afagos à mídia e ao poder econômico.
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Dados fiscais acusam gastos do governo da ordem de de US$ 14 bilhões para aviões de guerra; US$ 10 bilhões na reforma de caminhões presidenciais; US$ 2 milhões para a compra de tanques; US $ 6 bilhões para aparecer em um programa de televisão diário; US $ 3 bilhões para melhorar sua imagem nas redes sociais, e US $ 2,3 trilhões em subsídios destinados a banqueiros e grandes empresários.
As forças repressivas que Ivan Duque está mobilizando têm lastro em treinamentos que vêm de longe. No comando da resposta militar está o general Eduardo Enrique Zapateiro Altamiranda, que esteve à frente da chamada Operação Fênix de 2008, na qual Raúl Reyes, o segundo líder histórico das FARC, foi assassinado.
O Correo de Alba explica que o general tem 36 anos de serviço militar, comandou diversos batalhões militares nacionais e extraterritoriais em Israel. Em 1982 comandou um Batalhão no Sinai.
Ao incentivar um grupo de policiais a manter suas ações após a entrada em Cali, Zapateiro declarou: “Aqui está o seu comandante do Exército, não se preocupem (…) A Polícia Nacional da Colômbia é a mais treinada e qualificada do mundo”.
O desejo da extrema direita internacional de investir no controle da América Latina está em guerra interna para manter seu posto avançado na Colômbia. A vontade popular de vencer as armas no país vizinho pela resistência nas ruas diz respeito ao futuro de todo continente.
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