Israel parece agir como se as narrativas de suas ações na Palestina pudessem ficar indefinidamente sob seu controle. Mas com toda tecnologia que permite ao Estado vigiar e criminalizar a solidariedade com o povo palestino, a realidade da resistência interna lhe escapa pelas rachaduras de uma construção erguida sobre alicerces de um edifício anterior, impossível de implodir.
Há uma luta de vida ou morte para o povo palestino, decidido a sobreviver e conquistar a libertação de sua terra ocupada, a despeito das perdas que enfrenta todos os dias sob ocupação. Israel tem a força de um estado tecnológico, militarizado, rico e protegido por potências mundiais, mas exibe pés de barro ao erguer-se sobre uma política apartheid, que vai sendo reconhecida na cena internacional.
A justificativa para a violência em Sheikh Jarrah e na Mesquita de Al-Aqsa parece um jogo de espelhos, em que o Estado ocupante atua para trocar de narrativa com o povo ocupado. Sobrepõe ao sofrimento dos que oprime hoje, a sua própria história de povo perseguido e ameaçado no passado. Mas há um limite perigoso quando se trata de querer transmutar e ressignificar o sagrado – não só em termos de religião mas de memória e identidade de um povo originário – para justificar uma política de limpeza étnica.
O esforço em caracterizar as fundações do complexo de Al-Aqsa como local sagrado para israelenses – propondo inclusive a demolição da mesquita – tornou-se parte da disputa por Jerusalém, como mostra o documentário A corrida para Judaização de Al-Aqsa , onde argumentos religiosos vão se costurando para sedimentar o processo político.
Sem convencimento internacional, o sionismo recorreu a atividades extremas para acelerar a mudança de status da mesquita islâmica, como as que ocorreram no Dia de Jerusalém judaico de 2017 , quando cerca de mil colonos invadiram o complexo, sob proteção da polícia israelense que agrediu, não os ocupantes, mas os seguranças da mesquita.
Convocações massivas foram feitas para a celebração da data com invasões este ano, e elas começaram no entardecer deste domingo, com uma centena de feridos em Al-Aqsa e Sheikh Jarrah, tensões dentro e fora da região e uma reunião urgente do Conselho de Segurança da ONU.
Desde que o Tribunal Criminal de Haia decidiu investigar os crimes cometidos desde os ataques à Faixa de Gaza em 2014, a narrativa israelense vem sendo esgarçada por novos discursos, como o reconhecimento do apartheid pela Human Rights Watch.
Dias de festa sobre a tragédia
Israel quer Jerusalém como capital indivisa do Estado judaico e maio é um mês em que o espírito nacionalista israelense é especialmente insuflado por um calendário repleto de celebrações da ocupação. E de revolta para os palestinos que marcam os mesmos dias de mobilização. Para os israelenses, são celebrações de vitórias inconclusas e não reconhecidas internacionalmente. Para os palestinos, são demarcações de uma resistência inamovível e de um direito assegurado mas não protegido pela comunidade internacional.
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Os palestinos estão celebrando os últimos dias do mês sagrado do Ramadã, que termina dia 14 de maio. Mas o período marcado por jejum e orações, vai se encerrando em meio a conflitos e confrontos na cidade sagrada.
Está próxima a celebração, dia 15 de maio, da data mais importante nesse calendário, a fundação do Estado de Israel para os sionistas, em 1948, e a Nakba ou catástrofe para os palestinos, quando a expulsão violenta de 800 mil habitantes dá início a um processo de limpeza étnica e de um conflito que, conforme os tratados internacionais, não terá fim sem uma solução para Jerusalém, capital de um futuro Estado para os palestinos.
Israel tem acelerado a história da ocupação em seu favor, desde que ocupou a parte Árabe Oriental na Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967.
No calendário judaico, esse fato correspondeu ao dia 28 do mês hebraico de Iyar, o que este ano cai neste dia 10 de maio.
Em 1980, o Knesset aprovou a Lei básica de Jerusalém, capital de Israel, que proclamava “Jerusalém, unida e indivisa […] capital de Israel”. Além de considerada nula pela Resolução 478 do Conselho de Segurança da ONU, a lei e a ocupação sionistas não puderam avançar sobre a Mesquita de Al-Aqsa, que foi mantida sobre gestão muçulmana.
Em 2018, o mês de maio foi escolhido pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para inaugurar a embaixada americana em Jerusalém, concretizando com o gesto seu apoio a declaração de Jerusalém como capital indivisa de Israel. As políticas de Trump e os Acordos de Abraão deram combustível ao extremismo sionista que busca gerar fatos consumados pela força.
A atenção internacional aumentou a lupa sobre as celebrações em Jerusalém e o assalto à Sheikh Jarrah tornou-se motivo de alerta máximo.
Construção da tragédia
A lei israelense de Assuntos Administrativos de 1970 é criticada por ignorar o direito dos palestinos ao que lhes foi tomado em 1948, quando reivindica para os israelenses o que alega terem sido perdas suas naquele ano em Jerusalém Oriental.
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Famílias palestinas vivem em Sheikh Jarrah desde que um grupo de refugiados da Nakba de 1948 foi realocado para a área, em 1956, então sob gestão da Jordânia, que ficou responsável por fornecer-lhes a titulação de propriedade após um tempo de pagamentos simbólicos. Mas o processo formal foi interrompido com a ocupação israelense da Cisjordânia, incluindo Jerusalém, em 1967.
Com base na Lei de Assuntos Administrativos de 1970, o Comitê Sefardita e o Comitê Knesset de Israel, duas organizações religiosas de Israel, alegaram serem donas anteriores da área, desde 1885. Processos, despejos e apelações tornaram-se recorrentes. Tribunais menores já deram ganhos de causa aos israelenses e uma apelação dos moradores chegou à corte superior do país. Uma audiência marcada inicialmente para esta segunda-feira para julgar as apelações foi adiada para junho. Porém, a decisão não impede que as sentenças tomadas anteriormente contra os moradores sejam aplicadas por conta própria pelos colonos.
“Uma nova data será definida nos próximos 30 dias. Entretanto, até nova ordem, ordeno que a decisão do tribunal de recurso seja congelada, o que não implica qualquer posição a respeito” , decidiu o tribunal.
Atualmente, 38 famílias palestinas vivem em Sheikh Jarrah, quatro delas enfrentando despejo iminente, enquanto três devem ser removidas em 1º de agosto. Os despejos em Sheikh Jarrah, tem a mesma importância estratégica para a judaização de Jerusalém. O bairro compõe um cinturão da cidade que Israel quer ver ocupado.Como as decisões de primeira instância continuam válidas, mais de 70 palestinos em Sheikh Jarrah podem ser despejados e substituídos por israelenses..
A resiliência palestina tem ultrapassado os muros da ocupação e tenta puxar os fios de uma reação internacional. Algo já tem conseguido.
O chamado Quarteto do Oriente Médio (Nações Unidas, Estados Unidos, União Europeia e Rússia) condenou neste domingo a violência ocorrida em Al-Aqsa e exigiu que Israel interrompa os planos de despejo em Sheikh Jarrah.
Além da posição conjunta com a ONU e a Rússia, declarações foram emitidas pela União Europeia, os Estados Unidos, o Canadá, a Jordânia, Turquia, Catar, Egito, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e África do Sul contra os despejos e a violência em Jerusalém.
A reação palestina também preocupa israelenses e lideranças já apontam para a possibilidade de uma nova Intifada. Do lado de Israel, está difícil um ganho de causa senão pela força extremista alimentada durante os últimos anos. O Dia de Jerusalém de 2021 aparece no calendário como uma dia de festa mas foi programado para a guerra.
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