A mídia na América Latina tem combinado a transmissão de imagens dos confrontos entre Israel e Palestina, com relatos do conflito que via de regra partem do meio dos acontecimentos – os foguetes de Gaza. Não houve cobertura para as tensões que cresciam os dias a fio antes de 10 de maio, e com as convocatórias de colonos a uma invasão a Al-Aqsa, em plena oração do 28º dia do Ramadã, para celebrar a tomada de Jerusalém na Guerra dos Seis Dias. Ameaças desse tipo e demolições de casas palestinas, recorrentes, já viraram assunto sem interesse. Como disse o colono para justificar seu crime à própria vítima: “Se eu não roubar sua casa, outra pessoa a roubará”.
Conforme o país em que se encontra, a cobertura inclui manifestações formais de suas autoridades por um desfecho pacificador e posições no conflito. O pacote não foge à regra internacional. Praticamente só as mídias livres – veículos de imprensa que atuam fora do mercado- e a imprensa progressista têm divulgado manifestos coletivos da sociedade civil, que mobilizam centenas de organizações preocupadas com o rumo dos confrontos ao lado das forças políticas que pedem o fim da ocupação dos territórios palestinos – causa original da tragédia.
Cegando o olhar da mídia
Pautados principalmente pelas agências globais que mantêm correspondentes em Tel Aviv, o problema da pretensa neutralidade da grande mídia na região começa pela limitação das fontes. Israel sabe que sua narrativa depende do que a mídia enxerga e não é por acaso que dois edifícios em Gaza que mantinham escritórios de imprensa foram atacados e destruídos por mísseis teleguiados.
Os edifícios Al-Jawhara e Al-Shoruk, bombardeados desde quarta-feira, abrigavam diversas mídias árabes. Jornal Felesteen, Agência APA, TV Aletejah do Iraque, TV Al-Mamlaka da Jordânia, e TV Síria. Neste sábado, vieram abaixo escritórios da Al-Jazeera, France Press, the American News Agency, alem de vários escritórios de advocacia.
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O secretário geral da Federação Internacional de Jornalistas FIJ, (IFJ na sigla usual em inglês), Anthony Bellan, acusou Israel de “uma clara tentativa de silenciar as informações da mídia local” e pediu à comunidade internacional que “não feche os olhos à violação sistemática dos direitos humanos e aos ataques deliberados contra a mídia e jornalistas. É necessária uma ação urgente para responsabilizar internacionalmente os responsáveis por esses crimes ”
Ainda que ferindo o coração da imprensa, a naturalização da narrativa israelense não é facilmente desmontada pelas organizações que lutam pelo direito à informação, quando a mídia fica sujeita ao controle de Israel até para a cobertura do campo adversário.
Vozes diretas de Gaza são dificultadas e, não raro, silenciadas. A última vítima, a jornalista palestina Reema Saad, grávida de 4 meses, foi morta , com seu marido e filhos, em seu apartamento no bairro de Tal al-Hawa, na cidade de Gaza, bombardeado por Israel nesta sexta-feira (14).
Os argumentos pela criminalização do Hamas sempre encontram espaço editorial na mídia
Ainda na sexta-feira (14), o jornal Folha de São Paulo publicou artigo do cônsul geral de Israel em São Paulo, Alon Lavi. O artigo, introduzido com uma frase freudiana sobre charutos, começa de fato assim: “A violência entre Gaza e Israel voltou porque o Hamas, uma organização terrorista, decidiu provocar violência mais uma vez.”
Neste momento, a reação armada aos conflitos em Al-Aqsa e Sheikh Jarrah é coordenada pelo Hamas, a partir de Gaza, e em apoio à resistência civil em Jerusalém e em toda a Cisjordânia. Sendo, como a mídia sustenta, um conflito entre dois lados – o que sugere pesos iguais em uma guerra -, é de se esperar da Folha que publique uma resposta da própria fonte, no caso, algum dirigente ou representante oficial do Hamas. O fará?
— Refaat Alareer 🇵🇸 (@itranslate123) May 11, 2021
Negacionismo e vigilância
As mídias na América Latina tendem a uma narrativa dos Estados Unidos sobre o conflito, só questionada pelas publicações mais progressistas. E sobre espaço para a neutralidade. Toda crítica ao tratamento de Israel aos palestinos tem sido criminalizada pelos lobbies sionistas como antissemitismo, e vigiada no centro da política internacional.
Não é segredo que o veto do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, nas reuniões fechadas do Conselho da Segurança da ONU, impediu que o órgão interviesse no conflito.
Biden também baixou a cabeça ao lobby sionistal e declarou não ter visto nenhuma reação exagerada de Israel, um exercício do direito de defesa. Sua porta-voz precisou esquivar-se de responder a um jornalista que queria saber: o presidente acredita que os palestinos também têm direito à legítima defesa? O Biden desceu assim do altar do progressismo onde vinha sendo colocado desde a derrota de Donald Trump, igualando-se a ele na negação da realidade do confronto.
Esta semana, de fato, Trump voltou a surgir no céu de Biden, como uma sombra. É difícil entender qual o sentido da carta endereçada a ele por 124 de generais aposentados voltando a colocar em dúvida a sua vitória eleitoral. Eles questionam também sua capacidade mental para comandar o país e “tomar rapidamente decisões precisas de segurança nacional envolvendo vidas e membros em qualquer lugar”. Os velhos generais se comprometeram a “defender a Constituição dos Estados Unidos contra todos os inimigos, estrangeiros e domésticos” Mas afinal, do que estão falando?
Embora periférico nesse jogo de tensões, o governo brasileiro de Jair Bolsonaro imita as posições da direita americana – questiona desde o resultado das próximas eleições no Brasil – e trata de criminalizar o Hamas.
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– É absolutamente injustificável o lançamento indiscriminado de foguetes contra o território israelense.
– A ofensiva provocada por militantes que controlam a Faixa de Gaza e a reação israelense já deixaram mortos e feridos de ambos os lados.
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) May 12, 2021
O jornal mexicano La Jornada resume em uma frase o que pensam as forças progressistas da região sobre a desigualdade nos confrontos: “saltam aos olhos a desproporção e o excesso da resposta de Israel”.
Em editorial, a publicação enumera razões para a revolta palestina: “Sem querer justificar o uso da violência, deve-se apontar que o desespero e a raiva que se espalharam na Palestina ocupada após sete décadas de expropriação territorial, de matanças massivas e seletivas, de confinamento forçado de populações inteiras, de saques de recursos naturais , uma discriminação muito semelhante ao regime de apartheid que existia na racista África do Sul e, no caso de Gaza, um bloqueio impiedoso que implica, para a população daquela infeliz área, a impossibilidade de importar insumos básicos por longos períodos”.
Na Venezuela, a TV de alcance latinoamericano Telesur, trás relatos do mundo árabe em parceria com agências da região, como a Palinfo, e repercussões da situação da Palestina na região.
A lista de problemas e as imagens dos confrontos entre Israel e Palestina exibidas diariamente nas redes sociais justificam os sinais de esgotamento do discurso hegemônico que vitimiza Israel. E a busca de informação confiável.
Um simples pedido do youtuber brasileiro Felipe Neto por indicação de literatura que explique a posição de Israel no conflito com Palestina mobilizou internautas. Ele explica que se revoltou com a leitura de um artigo de Noam Chomsky e agora busca entender o outro lado, Provavelmente sionistas, esquerdistas, acadêmicos e curiosos estejam sugerindo obras, informações e posições que possam orientar, ou até influenciar o influenciador. Inclusive o Monitor do Oriente Médio quis contribuir com a bibliografia enviando o livro de Nur Masalha, que amplia o olhar de hoje para os antecedentes históricos.
Alguém tem livros para me indicar que justifiquem ou mostrem o lado de EUA e Israel em relação a tudo que foi feito com a Palestina?
O que estou lendo de Chomsky é revoltante. Quero saber se há literatura de outro ponto de vista para poder ser justo.
— Felipe Neto (@felipeneto) May 7, 2021
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O povo palestino está enfrentando uma força maior do que todos os seus foguetes. Mas já venceu uma semana de guerra por não ter recuado, criando um sentido de urgência para a solidariedade mundial. Do Líbano, Síria e Jordânia pessoas à pé quebram cercas e tentam levar seus corpos para luta, e dizer aos palestinos que não estão sozinhos. O poder desta comoção ainda não foi testado pela capacidade bélica e midiática da ocupação, na disputa fundamental pelo imaginário do mundo.
As inquietações são fortes com o descontrole da violência e o que haverá de perdas até o desfecho desta guerra. Das pressões do deep state americano às interrogações nas redes sociais, das fontes em Telaviv às mídias atingidas em Gaza, da força das grandes cadeias de TV ao esforço das mídias progressistas e alternativas, das grandes marchas no Cairo aos manifestos coletivos na América Latina, a narrativa hoje em disputa determinará o futuro do povo palestino.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.