Após os bombardeios de sábado (15) no coração da Cidade de Gaza, matando ao menos 43 pessoas, incluindo dez crianças e dezesseis mulheres, os palestinos de Gaza mais uma vez enfrentam memórias traumáticas. As atrocidades que ocorrem agora trazem lembranças. Aviões de guerra israelenses destruíram nossas famílias de modo tão hediondo que a imagem permanece conosco por décadas e décadas. Por exemplo, foi assim por três semanas consecutivas, durante a chamada Operação Chumbo Fundido, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009; e por sete semanas, entre julho e agosto de 2014.
Escombros de quarteirões inteiros e enormes buracos na Rua Alwehdah, onde há uma semana a vida transcorria normalmente, são imagens traumáticas que evocam memórias de atrocidades passadas.
Hoje, há centenas de feridos carregados a hospitais superlotados que carecem desesperadamente de suprimentos, após anos e anos de cerco israelense. Esforços comunitários continuam em curso para resgatar os sobreviventes nos escombros.
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Entre os mortos: Moen Al-Aloul, psiquiatra aposentado que tratou milhares de palestinos no Ministério da Saúde de Gaza; Raja Abu-Aloud, psicóloga assassinada junto de seu marido e filhos; e Aymand Abu Alouf, consultor médico que liderava a equipe de combate ao covid-19 no Hospital Shifa, junto de sua esposa e seus dois filhos.
Memórias dos traumas passados são impossíveis de esquecer porque nos falta, a todos nós em Gaza, uma noção fundamental de segurança. Os drones israelenses jamais deixaram de sobrevoar os céus acima de nossas cabeças, desde a ofensiva de 2014. Bombardeios continuaram em noites aleatórias, frequentes o bastante para sempre nos recordar daquilo a que fomos expostos e voltaremos a sê-lo.
O ataque do fim de semana ocorreu sem alerta — mais outro massacre. Na noite anterior, dez pessoas foram mortas, incluindo oito crianças e duas mulheres. Uma família de sete pessoas foi devastada, salvo o pai e um bebê de três meses. O pai sobreviveu por não estar em casa e o bebê foi resgatado dos escombros, protegido pelo corpo da mãe.
Não são imagens novas na Faixa de Gaza, lamentavelmente. Trata-se de algo que continua a acontecer ao longo das sucessivas ofensivas israelenses. Durante os bombardeios de 2014, relatou-se que 80 famílias foram mortas sem nenhum sobrevivente, cujo óbito foi registrado apenas posteriormente. Em 2014, um único ataque de Israel destruiu o edifício de três andares que pertencia à minha família, deixando 27 mortos — dentre os quais, dezessete crianças e três mulheres grávidas. Quatro famílias foram simplesmente varridas da existência. Um pai e um menino de quatro anos foram os únicos sobreviventes.
Agora, os relatos e receios de uma possível invasão por terra são demais para nós, outra lembrança do horror que enfrentamos.
Um ataque bárbaro compreendeu 160 jatos combatentes por mais de 40 minutos nas áreas mais ao norte da Faixa de Gaza. Na mesma hora, bombardeios de artilharia — 500 cápsulas — atingiram a região leste da Cidade de Gaza e áreas ao norte. Muitas casas foram destruídas, apesar da maioria de seus residentes conseguirem escapar no último momento. Estima-se que mais de 40 mil pessoas correram às escolas da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) ou casas de parentes em busca de abrigo.
Para a maioria dos palestinos de Gaza, trata-se de uma lembrança da primeira onda de ataques, em 2008. Era sábado, às 11h22 quando sessenta jatos combatentes começaram a bombardear a Faixa de Gaza e aterrorizar seus habitantes. Na ocasião, a maioria das crianças em idade escolar estava nas ruas, retornando para a casa após o turno da manhã, ou a caminho da escola para o turno da tarde. Crianças começaram a correr apavoradas enquanto seus pais aguardavam aflitos em casa, sem saber o que ocorreu a seus filhos.
O deslocamento de famílias inteiras pela ofensiva em curso é outra recordação dolorosa de 2014, quando 500 mil pessoas sofreram deslocamento interno. E mesmo após o cessar-fogo, 108 mil pessoas não puderam retornar às suas casas destruídas.
Os palestinos têm de lidar agora com os gatilhos destes traumas prévios e outros além. A situação dificulta o processo de tratamento e cura e, em muitos casos, traz uma recaída de sintomas. Tentamos sempre esclarecer que os palestinos de Gaza não vivem em síndrome de estresse pós-traumático, pois sua condição permanece vigente e demanda ainda maior atenção, com a intervenção certa – não somente clínica, mas sim moral e política. Uma intervenção de fora, capaz de superar as raízes do problema — isto é, dar fim à ocupação e respeitar os direitos humanos com base em um sentimento coletivo de segurança, que nenhuma criança ou família em Gaza hoje vivencia.
Muitas pessoas em nossa comunidade ligam à nossa clínica desde o primeiro dia. Algumas pessoas trabalham em hospitais, outras em ongs. Algumas pessoas recorreram ainda à nossa página do Facebook para perguntar sobre os serviços do Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza (GCMHP). Há traumas por todos os lados e somos requisitados.
Nossa equipe é parte da comunidade. Alguns tiveram de deixar suas casas em busca de alguma segurança para ajudar uns aos outros. Ainda assim, não há segurança. Contudo, mantemos nossa devoção à comunidade de Gaza. Sentimos uma enorme responsabilidade pelo papel vital que exercemos no apoio ao bem-estar psicológico de todos os palestinos de Gaza. Estamos absoluta e incansavelmente disponíveis.
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Ao longo do fim de semana, tornamos públicos os números de celular da maioria de nossa equipe técnica. No domingo, nossa linha-direta gratuita retomou operações diárias, das 8 horas da manhã às 20 horas da noite. Nossa página do Facebook começou a divulgar aos pais formas de lidar com o estresse da guerra imposto às crianças. É verdade que não tivemos a chance de preparar devidamente um novo material, mas nossa biblioteca é bastante rica e podemos também compartilhar conhecimento e apoio online, via redes sociais e YouTube. Talvez não seja o bastante, mas definitivamente é o que podemos fazer nas circunstâncias atuais, a fim de conceder às famílias força e capacidade para lidar com a situação.
Até a noite de domingo, 197 palestinos foram mortos, incluindo 58 crianças, 34 mulheres e quinze idosos. Outros 1.235 ficaram feridos. Como psiquiatra, posso dizer que as baixas psicológicas, para além do visível, se impõem severamente a todos — do mais jovem ao mais idoso, do medo à ansiedade.
É um imperativo moral a todos olhar diretamente para o que sofremos e agir para salvar as vidas de Gaza, ao conferí-las uma noção de segurança de que todo ser humano precisa.
Yasser Abu Jamei é diretor-geral do Programa de Saúde Mental da Comunidade de Gaza
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.