“Estou recebendo mensagens de meus amigos israelenses”, relatou uma cidadã palestina do território considerado Israel via plataforma Signal — pois suspeita que o serviço de inteligência interna Shin Bet possa monitorar suas chamadas. “Eles me dizem para não me preocupar. Que as coisas voltarão ao normal”.
“Pensei comigo: ‘O normal para você é ir à praia. O normal para nós é voltar à prisão. O que é normal para um palestino de Gaza, da Cisjordânia, de Jaffa? Sorrir ao serví-los falafel e homus, ao vender nossos vegetais e consertar seus carros por um preço mais baixo do que pagariam em casa, trabalhar na construção civil?”
“Temos muito medo do massacre que pode acontecer. Mas ficamos felizes. Pela primeira vez na minha vida, vejo despertar algo que esteve dormente por décadas e décadas”, prosseguiu. “Vejo uma nova geração adiante, mais jovens do que eu, que não recebem ordens de ninguém e resistem! Estou feliz demais por não me considerar ‘árabe-israelense’. Sou palestina e, pela primeira vez na minha vida, vejo a luz no fim do túnel!”
Alimentando a resistência
A entrevistada tem passaporte israelense, um bom emprego, um apartamento simples — e de fato, um lar expropriado certa vez de uma família palestina de Jerusalém. Ela viaja regularmente à Europa. Seu hebraico é perfeito, melhor do que muitos imigrantes judeus. Com efeito, costuma ser confundida com uma cidadã judia.
É apenas uma entre uma cacofonia de vozes e não a escolhi porque cabe ao que penso. Mas a cada dia que passa, os sentimentos que ela expressa — e outros palestinos como ela que não podem dizer em voz alta — tornam-se mais decisivos ao futuro da causa palestina do que qualquer declaração distorcida do Presidente dos Estados Unidos Joe Biden e seu Secretário de Estado Antony Blinken.
De fato, cada quarteirão destruído por jatos de guerra israelenses em Gaza, cada família expulsa de suas casas em Jerusalém ocupada, cada residência outorgada a colonos judeus por cortes da ocupação representa agora um ato de guerra. E toda a ofensiva não é mais capaz de compelir derrota ou resignação, mas apenas alimentar a chama da resistência.
A esquerda sionista prefere ver o status quo como violado por “extremistas de ambos os lados”, ao colocar colonos judeus e a resistência palestina como faces da mesma moeda. Todavia, o cotidiano, caso acompanhemos o relato supracitado, é radicalmente colonial, no qual beneficia-se um lado em uma disputa extremamente desigual.
Os últimos nove dias mudaram o conflito de uma forma que a maioria das pessoas fora das cidades mistas de Haifa, Lod, Ramle, Acre e Jerusalém ainda não puderam compreender.
A realidade das relações entre israelenses e palestinos que, há nove dias parecia superficialmente concreta desabou com uma velocidade que ninguém — muito menos a própria entrevistada acima — jamais poderia prever.
Unidos vencemos
Por décadas, a estratégia de Israel — sob um governo de direita ou esquerda, não importa — era dividir e conquistar.
Os palestinos viviam separados em bantustões sob diferentes regimes e diferentes direitos ora assegurados, ora expropriados. Gaza, como estado inimigo sob cerco militar, recebe ainda somente calorias e eletricidade suficientes para sobreviver. A Cisjordânia ocupada permanece sob governo nominal de uma liderança palestina não-eleita. Há ainda os palestinos de Jerusalém, que dependem de vistos de residência para morar em suas terras, ou os cidadãos palestinos de Israel, que têm passaportes designados. Os palestinos na diáspora não parecem existir, segundo a lógica do estado israelense.
Cada comunidade possui seus próprios problemas. Para a Faixa de Gaza, falta eletricidade, água e mesmo cimento. Para a Cisjordânia, emprego e salário. Para Jerusalém, a expulsão de suas casas; e para os cidadãos palestinos de Israel, um regime de desigualdade e discriminação. Porém, todos dependem de Israel, para abrir e fechar portões e muros, para ter acesso a recursos tributários, para obter tratamento médico essencial. Além disso, o aparato de segurança da Autoridade Palestina (AP) foi deliberadamente projetado e treinado como extensão das forças da ocupação israelense.
Desta forma, os palestinos são mantidos sob grilhões, com o mínimo de subsistência asseverado pela ocupação.
A separação tornou-se tão dominante ao ponto de, por anos, ser internalizada pelos próprios palestinos. Não poderiam pensar o contrário. Quando a guerra eclodiu em Gaza — em 2009, 2012 e 2014 —, os palestinos da Cisjordânia eram quase como espectadores passivos. Carros não foram incendiados em Lod. Não houve greve geral. Os residentes das áreas sob ameaça de despejo, como Sheikh Jarrah, resistiram sozinhos por décadas.
Por nove dias, a união correu nas veias do povo palestino. Foi registrada ao vivo pela rede Al Jazeera. Não obstante, em certo momento da última semana, a tela dividiu-se entre cenas de manifestações palestinas no Portão de Damasco, acesso da Cidade Velha de Jerusalém, e marchas de colonos judeus, com bandeiras de Israel, no Portão de Hebron.
A princípio, não compreendi o que via. Um foguete de Gaza cortou os céus. Os colonos fugiram em pânico. Os palestinos permaneceram ali, naquele mesmo lugar, acenando e celebrando. Os palestinos de Jerusalém haviam pedido a Gaza que interviesse, em apelo a Mohammed al-Deif, chefe das Brigadas al-Qassam, para ir a seu apoio.
A verdade intragável
As forças de segurança israelenses justificaram tais imagens ao alegar, sem evidências, que os organizadores dos protestos em Jerusalém ocupada eram membros do Hamas.
Israel deu crédito demais ao grupo palestino. Não eram apenas membros do Hamas que gritavam o nome de Mohamed al-Deif em Jerusalém. Ao contrário, uma nova geração de palestinos em busca de seu próprio Salah al-Din. A verdade intragável é que o Hamas não parece ter cometido um erro ao disparar seus foguetes sobre Jerusalém ocupada, quando Israel recusou-se a retirar-se de Al-Aqsa.
Ao lançar seus mísseis não em defesa de Gaza, mas al-Aqsa, o Hamas levou o conflito a um novo ponto de inflexão e encorajou a revolta também dos palestinos da Cisjordânia e do território ocupado em 1948 — isto é, durante a Nakba ou “catástrofe”, pela criação do Estado de Israel. Caso os foguetes não fossem disparados, a situação voltaria à rotina, após o fim do Ramadã, e era isso que esperava a imprensa israelense. Após o Ramadã, autoridades israelenses poderiam retomar suas operações de despejo contra os residentes palestinos de Sheikh Jarrah, em particular, e Jerusalém ocupada, em geral.
Como consequência, os eventos que sucederam criaram de fato uma frente palestina abrangente por liberdade e justiça, um fenômeno talvez não visto desde 1948.
Uma revolta dessa dimensão não surge do nada. Foram décadas para chegar até aqui. Deflagrou-se precisamente no momento em que a direita israelense gabava-se abertamente do fim do conflito, tanto à imprensa dos Estados Unidos e internacional quanto nos fóruns da ONU. Na segunda-feira (17), bandeiras do Fatah flamularam ao lado de bandeiras do Hamas em manifestações em Nablus, na Cisjordânia ocupada, algo não visto também há muito tempo. O partido Fatah, que domina a Autoridade Palestina, parece responder até então de acordo com a atmosfera.
Collective mobilization of Pals makes it harder for Israel to isolate its narrative on Gaza – to argue that Gaza is a “terrorist enclave” distinct from Palestine. Israeli Hasbara, e.g. human shields, is flimsier than ever. Full picture is emerging as Gaza’s exceptionalism breaks.
— Tareq Baconi طارق بقعوني (@TareqBaconi) May 17, 2021
‘Mobilização coletiva dos palestinos dificulta a Israel isolar sua narrativa a Gaza … a propaganda israelense de escudos humanos jamais foi tão frágil’, observa o ativista Tareq Baconi
Uma união semelhante emergiu no início da Segundo Intifada, mas logo que Yasser Arafat controlou suas decorrências, o Fatah retornou à cooperação de segurança com seus tesoureiros da ocupação de Israel. É notável que uma greve geral foi convocada pela primeira vez pelos palestinos de 1948, então apoiada pelos residentes da Cisjordânia ocupada, que culminou na maior greve geral da Palestina desde 1936.
Há razões para ceticismo sobre a recente união. Os líderes palestinos são mestres antigos na troca de peles para oscilar de um campo político ao outro conforme convém. No entanto, não foram eles que impulsionaram as recentes manifestações; mas sim foram carregados por elas.
Palestinos e árabes
A segunda maior estratégia frustrada nos últimos nove dias correspondeu às tentativas reiteradas de apartar os palestinos de seus apoiadores árabes — sobretudo os signatários dos Acordos de Abraão, em Washington, em 2020, e antes deles, Egito e Jordânia, que detêm tratados de paz com Israel.
Apenas algumas semanas atrás, parecia que a Arábia Saudita logo viria a bordo, seguida por Omã e Catar. Dentro de alguns meses, o boicote a Israel por potências do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) foi revertido e a Iniciativa de Paz Árabe — último esforço majoritário para solucionar o conflito — parecia encerrada. Os palestinos seriam em breve uma mão-de-obra imigrante e apátrida, relegados à condição dos curdos.
Embora o cenário ainda seja presente, embora influencers pagos e robôs online dos Emirados e da Arábia Saudita ainda propaguem a narrativa israelense, tal estratégia é pouco a pouco derrotada por manifestações populares de jordanianos na fronteira com Israel, assim como libaneses no sul do país árabe e egípcios que forçaram a abertura da travessia de Rafah, nos limites com Gaza, para socorrer palestinos feridos.
O presidente e general Abdel Fattah el-Sisi não é fã do Hamas, muito menos da Irmandade Muçulmana. Chegou a destruir uma cidade inteira, isto é, o lado egípcio de Rafah, e expulsar seus habitantes para inundar supostos túneis subterrâneos ao longo da fronteira.
Se qualquer líder árabe foi mais zeloso ao impor o cerco militar a Gaza do que Tel Aviv, este foi Sisi. Ainda assim, foi forçado a abrir a travessia de Rafah que perdeu tanto tempo e energia tentando selar.
É claro, mensagens políticas foram emitidas. Após o choque desagrável de uma tentativa de golpe palaciano, com apoio saudita, o Rei da Jordânia Abdullah II não teve dúvida de utilizar o tumulto para lembrar Netanyahu que Israel é sua maior e mais vulnerável fronteira.
Pouco acontece no reino sem permissão do mukhabarat jordaniano — ou polícia secreta —, sobretudo na região sensível da divisa com Israel. Desta forma, as imagens de multidões de jordanianos em marcha à fronteira israelense jamais ocorreriam sem autorização do governo. É revelador como os cidadãos do leste do país estão na vanguarda do protesto. Outro sinal de que as divisões, que tanto mantiveram em vigor o status quo, também se dissolvem.
A identidade exata do grupo responsável por lançar mísseis do sul do Líbano contra Israel não foi verificada. Até então, parece mais provável ao Hezbollah terceirizar mísseis do que dispará-los diretamente contra o arsenal mortal israelense.
A diáspora palestina
O terceiro flanco do status quo era isolar os palestinos espalhados em todo o mundo. Um ministério próprio — sob a alcunha de Assuntos Estratégicos — foi criado por Israel para combater o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) e lidar com políticos ocidentais que não coadunam com a narrativa sionista.
O ministério de fato obteve êxito em sua batalha tática de vincular qualquer oposição ao sionismo e à ocupação israelense com antissemitismo. Foi bem-sucedido em intimidar e aterrorizar toda uma geração de políticos de ambos os lados do Atlântico, ao utilizar o líder trabalhista Jeremy Corbyn como exemplo do que pode acontecer a qualquer um que se recusa a agir conforme os planos.
Mas tais vitórias táticas jamais alcançaram o âmbito estratégico. Independente de comentários cerimoniosos por parte da elite política, o sentimento de indignação popular e solidariedade a Gaza é aterrador. Enormes manifestações ocorreram em Londres, Nova York, Berlim, Paris e outras cidades.
Israel perdeu sua batalha em um campo pouco familiar: no TikTok e Instagram. As contas nas redes sociais das Forças de Defesa de Israel (FDI) tornaram-se motivo de piada.
Quando a celebridade Paris Hilton retuitou a entrevista do Middle East Eye com uma menina de dez anos de idade, moradora da Faixa de Gaza, na qual expressou em inglês fluente sua perplexidade com a guerra — “Tenho apenas dez anos! Porque eu mereço isso?” —, seu apelo angustiado deu a volta ao mundo inúmeras vezes.
O exército israelense é mestre na manipulação da verdade. Israel continua a ludibriar a grande imprensa ocidental e forçá-la a crer que uma incursão de infantaria contra Gaza de fato começou — supostamente a fim de expulsar combatentes do Hamas que atravessam a fronteira através de túneis. Nesta conjuntura, as forças aéreas da ocupação bombardearam ainda o edifício que abrigava escritórios da Associated Press e Al Jazeera.
Mas a narrativa hegemônica dos últimos nove dias não vingou, de modo que a grande imprensa hesitou a assumir posição e reportar todo o processo. A retórica israelense foi contestada nas redes sociais e as forças sionistas não conseguiram impedir que vídeos de crianças em Gaza se propagassem pelo mundo com um incêndio florestal. Além disso, palestinos demonstraram que são absolutamente capazes de expressar sua versão em excelente inglês.
Hilton deletou a postagem, mas Bella Hadid não. Não importa a pressão sobre as celebridades para confortar-se com o status quo, o dano já foi feito.
Uma nova manhã
Será a história a julgar se os eventos que testemunhamos poderão se transformar em uma nova Intifada por al-Quds ou Jerusalém. O debate hoje entre os palestinos é como uma terceira Intifada poderia prosseguir após o inevitável cessar-fogo.
Porém, vamos dizer que um silêncio exausto recaía sobre a região após a negociação de um armistício entre Hamas e Israel. Tudo voltará ao normal?
Duvido. Os contornos da nova luta já estão determinados. Jerusalém é seu centro geográfico e os cidadãos palestinos em Israel seus soldados em campo. Terão o apoio de uma geração que nada tem a perder. Sem líderes, sem estado, sem solidariedade efetiva de qualquer nação árabe, sem direitos, sem armas e sem esperanças. Privados de sua autodeterminação e mesmo identidade, discriminados pela chamada Lei do Estado-Nação, que designa Israel como estado aos cidadãos judeus e apenas aos cidadãos judeus, um levante não surpreenderia.
Os senhores poderosos e gananciosos da terra deixaram essa geração de palestinos com pouca ou nenhuma alternativa viável. A luta caracterizou-se por longos períodos de silêncio e submissão. Contudo, a cada ciclo, Israel confunde repouso com aquiescência. O estado sionista de fato se ilude em pensar que a questão acabou.
Vez e outra vez, uma nova liderança emerge da base. Foi assim com Yasser Arafat e acontece novamente. Cabe ao mundo enfim acordar e vivenciar a história.
Publicado originalmente em Middle East Eye
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