Os eventos violentos na Palestina ocupada, ao longo do último mês, desencadearam uma rara manifestação de união e solidariedade entre palestinos por todo o país e ao redor do mundo, da Cisjordânia ocupada e Gaza sitiada aos cidadãos palestinos de Israel — no território anexado ao estado sionista em 1948 — e na diáspora.
Em contraste, a sociedade judaico-israelense jamais esteve tão dividida. Apesar da clara vantagem que as forças da ocupação possuem em termos de armamentos sobre grupos da resistência palestina, Israel age de forma pouco ou nada coordenada. A estratégia de “dividir e conquistar”, utilizada pelo exército israelense há décadas, agora fracassa.
Os israelenses tomaram as redes sociais e blogs para compartilhar uma velha entrevista de Sara Netanyahu, esposa do premiê Benjamin Netanyahu, gravada há quase vinte anos, após seu marido fracassar em manter a liderança do partido ultraconservador Likud.
Seu sucessor, Ariel Sharon, como evidente provocação, invadiu a Mesquita de Al-Aqsa no ano 2000 e protagonizou assim um dos episódios centrais para deflagrar a Segunda Intifada. A violência e o colapso das negociações de paz derrubaram o governo de Ehud Barak e levaram Sharon à cadeira de primeiro-ministro. Em sua entrevista de 2002, Sara Netanyahu afirmou que Israel jamais poderia sobreviver sem seu marido e que, assim, o “país arde em chamas”.
Mais outra vez, um político israelense de extrema-direita reverberou uma clara incitação no complexo de Al-Aqsa, na busca pelo cargo de chefe de governo — contudo, a diferença desta vez é que o estratagema é bastante óbvio.
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Mesmo absolutamente ciente do ardil de Netanyahu, o populismo, racismo e pânico na sociedade israelense ainda é forte demais. Políticos de oposição permanecem aterrorizados com a possibilidade de serem rotulados como “esquerdistas”, então preferem render-se ao poder do que denunciar a violência. Netanyahu obteve o que queria: seus oponentes não foram capazes de formar uma coalizão sem ele e, enquanto isso, o país arde em chamas.
Uma turba enfurecida
Aluf Benn, editor-chefe do jornal israelense Haaretz, descreveu a recente ofensiva contra a Faixa de Gaza sitiada como a pior operação militar da história israelense, em termos de péssimo planejamento e preparação. A cobertura da imprensa israelense tenta exibir obstinadamente uma “imagem de vitória”, à medida que tenta preservar sua narrativa em meio ao cessar-fogo, pois a ínfima noção de que o Hamas poderia reivindicar êxito é intragável.
Mas quando oficiais israelenses sugeriram, a princípio, sua disposição em negociar um cessar-fogo, ao alegar que supostamente destruíram tudo em seu “banco de alvos”, comandantes veteranos logo desmentiram tal retórica, ao declarar à imprensa que solicitaram ao governo aval para bombardear alvos adicionais.
Forças da ocupação israelense em meio a protestos em Jerusalém, 22 de abril de 2021 [AFP]
Fissuras então surgiram entre o governo e as forças policiais. O comissário de polícia israelense pediu calma e coexistência entre árabes e judeus e chegou a até mesmo argumentar que os eventos recentes revelaram “terroristas de ambos os lados”. De imediato, o Ministro de Segurança Pública Amir Ohana condenou seus comentários e uma coluna pró-Netanyahu no jornal Israel Hayom não exitou em chamar o comissário de “esquerdista”.
O exército israelense vivencia um processo de deterioração a uma turba enfurecida. Desde o enorme apoio popular conferido ao soldado Elor Azaria por executar sumariamente um cidadão palestino, Abdel Fattah al-Sharif, em Hebron, em 2016, com pena de apenas nove meses de prisão, soldados sabem muito bem que podem agir com impunidade ao aplicar força letal.
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Além da máquina de guerra empregada nos bombardeios massivos em Gaza, unidades militares foram enviadas às chamadas “cidades mistas”, no território considerado Israel, para impor a lei marcial e reprimir eventuais levantes. Outras unidades foram despachadas para esmagar protestos na Cisjordânia ocupada e ao longo da fronteira com o Líbano — dezenas foram mortos.
Falta disciplina
Com o acúmulo de tarefas sobre as forças de segurança de Israel, a disciplina militar é mais crucial do que nunca — mas o exército israelense jamais foi tão indisciplinado e jamais Tel Aviv dependeu tanto da Autoridade Palestina em Ramallah para ajudar a manter a população nativa sob controle. Ainda não é certo se o presidente palestino Mahmoud Abbas pode continuar a coibir as insurreições populares, após cancelar as eleições nacionais e desapontar assim milhões de palestinos.
Embora a maior violência em Israel e nos territórios ocupados seja direcionada aos palestinos, e as baixas palestinas superam de longe as baixas israelenses, as fissuras internas à sociedade sionista também culminaram em atos de violência contra judeus. Não se trata apenas dos protestos dos palestinos de ‘48 — isto é, dos territórios ocupados durante a Nakba, ou “catástrofe”, como é descrita a criação de Israel —, que culminaram na morte de um judeu israelense, mas também multidões de direita e extrema-direita sem qualquer controle, que ameaçam reiteradamente a vida de políticos e jornalistas judeus.
Protestos de cidadãos israelenses contra o bombardeio de Gaza foram meramente esporádicos, à medida que turbas de direita e extrema-direita preparavam-se para atacá-los, sob a inépcia ou falta de vontade da polícia de proteger de fato os manifestantes. Uma mensagem simbólica de solidariedade com as vítimas árabes emitida pela empresa de telefonia móvel israelense Cellcom incitou chamados de boicote pela extrema-direita e as ações da empresa logo desabaram.
Muitos descrevem o colapso das instituições pseudodemocráticas de Israel — polícia, imprensa, judiciário e mesmo a sociedade civil — como sinais de fascismo. Entretanto, pode-se dizer que tamanha desintegração não representa um estado que tornou-se poderoso demais, mas sim um estado que perdeu sua habilidade de governar por meio da força. Quando o governo encoraja multidões de justiceiros a aplicar o apartheid, abre-se uma Caixa de Pandora que dificilmente voltará a ser fechada.
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Ao passo que políticos e jornalistas promovem a incitação contra seus próprios cidadãos — como faz Netanyahu há mais de uma década —, ao estimular a violência vigilante e mesmo assassinato, e quando jornalistas negligenciam seu dever de conduzir questionamentos críticos e, ao contrário, tentar humilhar convidados palestinos durante suas entrevistas, há ainda um preço a pagar. Tudo isso cria uma sociedade embasada no ódio e na divisão — profundamente cínica e individualista.
Os anos durante os quais um governo populista de Israel utilizou efetivamente o ódio como moeda de troca por poder não aumentaram em nada a disposição de seus cidadãos judaico-israelenses em assumir sacrifícios pessoais para manter os palestinos pacificados. Quando chega a hora de pagar um preço econômico, um preço em termos de segurança individual, torna-se mais do que nunca evidente que o sistema de apartheid é insustentável.
Shir Hever é membro-diretor da organização Jewish Voice for a Just Peace in the Middle East
Publicado originalmente em Middle East Eye
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