Aos 80 anos, Samir El Hayek mantém uma intensa rotina de estudos e trabalhos de tradução do árabe para o português. Nascido no Líbano, chegou ao Brasil e, ainda menino, iniciou sua carreira de tradutor, primeiro do português para o árabe e posteriormente, do árabe para o português.
El Hayek é referência no Brasil e no mundo árabe em traduções, sendo o primeiro tradutor do Alcorão para a língua portuguesa, convidado a falar em congressos em diversos países árabes.
Em entrevista ao Monitor do oriente médio, Samir El Hayek conta como iniciou sua carreira de tradutor e também faz uma breve apresentação do livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão.
Como se deu sua saída do Líbano e a escolha do Brasil para viver?
Foi reflexo histórico da visita de Dom Pedro ao Líbano, quando disse que as portas do Brasil estavam abertas para os libaneses, para quem quisesse vir. Então, depois da II Guerra Mundial, o Líbano ficou com muitos problemas para os habitantes e muitos libaneses começaram a imigrar para cá. Até então, havia poucos libaneses no Brasil. Havia cristãos, mas não muçulmanos. Foi após a II Guerra que começou a imigração dos muçulmanos. Cheguei ao Brasil com minha família em 1954.
Aqui no Brasil o senhor foi o primeiro a fazer a tradução do Alcorão? O que levou o senhor a fazer a tradução ainda jovem?
Tudo tem seus motivos, não há nada sem motivo. Quando cheguei ao Brasil tinha 12 anos de idade e meus pais queriam que eu estudasse, meu pai veio para trabalhar, mas para os filhos ele queria que estudássemos. Com essa idade ingressei no primeiro ano do grupo escolar e após dois anos chegou o primeiro sheikh no Brasil. Ele era do Egito, o Dr. Abdalla Abdel Shakour Kamel. Logo de início, todos na comunidade ficaram encantados com ele e meu pai me levou até o Sheik e falou “olha, cuide dele, ele é seu, faz o que quiser com ele”. E como eu falava e entendia bem o português, então, ele gostou muito da ideia, Ele fazia todos os sermões em árabe, não sabia português.
Esse Sheikh me influenciou muito, primeiro contribuiu na minha formação islâmica, porque eu tinha apenas 12 anos e nessa idade não há muita compreensão da religião. Permanecia com ele praticamente dez a doze horas por dia. Existia um grande interesse do Sheikh em tudo o que jornais publicavam aqui no Brasil sobre a República Árabe Unida, que naquela época era a união entre a Síria e o Egito e ele tinha interesse especial na questão política e a opinião da imprensa em relação ao Gamal Abder Nasser. Então eu fazia todas as traduções para ele do português ao árabe.
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Depois ele pediu para eu traduzir os sermões dele. E assim foi evoluindo. O Alcorão tem 30 partes, a 30° parte são suratas pequenas, aquelas que foram reveladas em Meca, ele pediu para eu começar a traduzir essas suratas pequenas e eu comecei, com muita dificuldade, porque o árabe do Alcorão é diferente. E ele foi me orientando e eu fui traduzindo e assim fui evoluindo. Traduzi o 30° livro, o 29°, 28° e assim foi, a coisa foi crescendo, até eu terminar de traduzir. Levou 10 anos para eu fazer a tradução completa.
Qual o significado do Alcorão para os muçulmanos?
Para os muçulmanos no mundo e nos países árabes muçulmanos, a constituição é o Alcorão. Porque o Alcorão abrange um método de vida. O alcorão é sua constituição e o seu ensinamento. Todos seus ensinamentos vëm dele e das práticas do profeta ( Que a paz de Deus esteja com ele). O Alcorão tem uma condição especial: em primeiro lugar, conservou a língua árabe, sem mudança, é a base da língua árabe. Para qualquer coisa que vai se discutir sobre o idioma tem que ler o Alcorão. Em segundo lugar, conservou também a crença dos árabes e dos muçulmanos. Os árabes eram praticamente idólatras, adoravam ídolos e foi o Alcorão que mudou totalmente a fé dos muçulmanos, a fé dos árabes. O Alcorão é essencial em tudo o que se diz respeito aos árabes em 1400 anos.
O alcorão engloba tudo, política, saúde, modo de vida …
Sem dúvida nenhuma, o Alcorão tem um sistema de vida. A vida da gente é constituída disso tudo. de política, de economia, da própria vida em sociedade, ele abrange tudo. Não há nada que o Alcorão não trate.
Como se deram as revelações no Alcorão?
A revelação do Alcorão foi durante 23 anos, sendo 10 anos em Meca e treze anos em Medina. As revelações tem tipos diferentes. De Meca era um estilo, de Medina um estilo totalmente diferente.
Cada lugar tinha um tipo de vida, inclusive, porque as revelações eram feitas dependendo da situação, sempre dependendo da situação e da sociedade. Em Meca, por exemplo, as revelações eram sobre as adorações, a fé, a crença. Em Medina já havia um Estado e a revelações foram relacionadas a isso e sobre a situação da sociedade, a vida e a política.
Existem também revelações que são consideradas de natureza científica…
Há revelações sobre uma série de coisas, tem uma revelação em que o Alcorão descreve até a formação da criança no útero da mãe. E isso só foi descoberto no século XX. Também fala sobre as impressões digitais, isso há 1.400 anos. Já estava no Alcorão coisas que o homem veio a descobrir há pouco tempo. Existem muitas coisas no Alcorão que só Deus mesmo podia revelar ao profeta.
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Como é feita a tradução do Alcorão, uma vez que a reza é toda em árabe ?
A tradução na verdade é o sentido dos versículos. Não existe Alcorão a não ser em árabe, a tradução é apenas o sentido dos versículos, é uma interpretação. A tradução nada mais é do que uma interpretação. E sem interpretação, ninguém conseguiria traduzir o Alcorão, porque o estilo do árabe é totalmente diferente, ninguém poderia compor alguma coisa parecida com árabe. De jeito nenhum. Então é a interpretação.
E como que isso afeta o Alcorão e o seu conteúdo?
Depende da formação do indivíduo e o que a pessoa está buscando. Por exemplo, o filósofo faz uma interpretação filosófica. Para o economista, uma interpretação econômica. Para a política, uma interpretação política, tudo é nesse sentido. O que a gente procura, a gente acha, tudo que a gente procura na Alcorão, a gente encontra.
O senhor participou de diversos congressos internacionais …
Sim, já visitei vários países e morei cinco anos em Moçambique. Fui convidado para dar palestra na universidade, gostei tanto do país que fiquei por lá. Estive no Egito, na Arábia Saudita, Kwait, Emirados, Jordânia, sempre convidado para participar de congressos. Na Turquia, além de participar de diversos congressos, me contrataram para traduzir os livros do Said Nursi para a língua portuguesa, traduzi todos os livros dele.