Maimônides, como é conhecido nas línguas europeias, ou Mussa ben Maimun, como é seu nome em árabe, é tido, por muitos estudiosos e pensadores, como o maior filósofo judeu de todos os tempos. “Mussa” é o nome árabe para Moisés; “Maimun” é o nome do pai do Maimônides, o significado da palavra árabe “maimun” é ditoso, afortunado, auspicioso; “ben” quer dizer filho. Portanto, o nome de Maimônides, traduzido literalmente para o português, seria: Moisés filho do Afortunado. Maimônides tem tamanha importância dentro do judaísmo, que é considerado a segunda maior personalidade da história judaica depois do profeta bíblico Moisés. Mas como o maior filósofo judeu da história pode ter nome árabe?
De fato, Maimônides nasceu no ano de 1135 da era cristã, na cidade de Córdoba, na Espanha, na época sob domínio árabe-muçulmano. Portanto, além do hebraico, Maimônides não somente era proficiente em árabe, como também escreveu boa parte de sua obra intelectual nesta língua semítica. De uma forma que talvez possa parecer surpreendente a muitos, abordar a vida e a obra deste grande vulto do pensamento judeu e universal é mostrar como a cultura islâmica e a civilização árabe contribuíram decisiva e enormemente para forjar e formar o homem, o erudito, o intelectual, o teólogo, o filósofo e o médico Maimônides. Alguns estudiosos e eruditos muçulmanos, e mesmo judeus, consideram-no um filósofo muçulmano, não no sentido da fé professada, mas no sentido do pensamento e da obra filosófica, grandemente influenciada pelos grandes nomes islâmicos, como Al-Farabi, Avicena e tantos outros.
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Para a região judaica, Maimônides é como São Tomás de Aquino para o cristianismo e Averróis para o Islam. Esses três grandes nomes do pensamento universal eram ao mesmo tempo teólogos e filósofos. O que os torna ícones é que os três tentaram conciliar teologia com filosofia, ou seja, fé com razão. Tiveram esmero em conciliar, cada um dentro de seus códigos teológicos próprios da sua religião, as escrituras sagradas com as obras dos grandes filósofos gregos, sobretudo Aristóteles. Dois destes três, Averróis e Maimônides, eram, além de grandes eruditos, renomados médicos.
Vida e obra
Ainda adolescente, por questões político-religiosas, Maimônides precisou se mudar, com a família, de Córdoba para a cidade de Fez, no atual Marrocos. Depois disso, Maimônides nunca mais voltou para a sua cidade natal. Filho de um pai erudito versado na religião judaica, a família de Mussa ben Maimun é considerada descendente do rei Davi. Mas as mudanças na vida de Maimônides não pararam no Marrocos. Ele transferiu-se definitivamente para o Egito, com uma passagem pela Palestina.
Saladino, o grande líder e libertador muçulmano do século XII da era cristã teve Maimônides como seu médico particular, assim como de toda a corte aiúbida no Cairo. A dinastia aiúbida unificou a Síria histórica e o Egito num único estado, após derrubar o califado fatímida no Cairo. Este califado era dissidente do califado abássida de Bagdá. Após derrubar o califado fatímida e voltar ao sunismo do estado no Egito, Saladino dedicou-se às guerras contra os cruzados, conseguindo o feito heróico de libertar a cidade de Jerusalém dos invasores europeus. É emblemático, portanto, que Maimônides tenha sido o médico pessoal deste nobre e eminente líder da história do Islam.
No Egito, Maimônides alcançou glória em cima de glória. Além de renomado médico, com cargo de médico da corte do sultão Saladino, o segundo Moisés atendia à população da cidade de Fistat, que hoje faz parte do Cairo. O maior dos filósofos judeus dedicou-se à profissão médica após a morte do irmão mais novo num naufrágio. Este irmão era o patrono do Maimônides. As atividade comerciais do irmão davam a renda que Maimônides precisava para ter tempo para dedicar-se à atividade erudita e intelectual. Com a morte do irmão, Maimônides viu-se obrigado a dedicar-se a alguma profissão para o seu sustento, de sua família e da família do seu falecido irmão.
A proximidade com o poder político local permitiu ao Maimônides alcançar a glória no campo da política. Ele chegou a ser o líder da comunidade judaica em todo o Egito, tendo a sua liderança reconhecida pelo sultão Saladino. Com esta manobra política, o sultão buscava aproximação com os judeus, para garantir a sua neutralidade ou, na melhor das hipóteses, o seu apoio, na guerra de libertação que o maior líder aiúbida da história empreendia.
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Paralelamente à sua atividade de médico e político, Maimônides exercia com vigor ímpar a sua atividade intelectual erudita nos campos da filosofia e teologia judaica. Ele escreveu inúmeras obras que buscaram fazer a interpretação do Torá e Talmude, e organizar a lei e jurisprudência judaicas. Na filosofia, os seus livros versaram sobre os mesmos assuntos que os filósofos muçulmanos da Idade Média abordavam, como Deus, o universo, o livre-arbítrio, as mensagens divinas e os livros sagrados. Buscou integrar a teologia judaica com o pensamento aristotélico.
Um grande polímata
O “sábio de Córdoba”, como é reconhecido Maimônides na tradição clássica árabe, faz parte do rol dos grandes polímatas que a civilização árabe-islâmica foi fértil e profícua em produzir. O polímata é o erudito que é perito em vários campos do conhecimento. Os polímatas são detentores de vastos conhecimentos, de cultura enciclopédica, e foram abundantes no Islam, quando comparado com outras civilizações e culturas. Mussa ben Maimun foi filósofo, teólogo, médico, escritor, político e líder religioso. Exerceu todas essas atividades com afinco e excelência. Mas o seu maior legado para a posteridade foi a sua obra filosófica e teológica, sendo a obra “O Guia dos Perplexos” o seu tratado filosófico-teológico mais aclamado e conhecido.
Um exemplo de tolerância do Islam
O caso de Maimônides revela como é tolerante a civilização islâmica com o cristianismo e o judaísmo. Se trouxermos este caso para os tempos atuais, podemos inocentar o Islam de acusações indevidas que lhe são dirigidas, entre elas o da não-aceitação das outras religiões monoteístas. Sejamos francos e justos, Maimônides só se tornou o segundo Moisés graças à cultura árabe-islâmica. Esta é uma dívida eterna que o judaísmo tem com o Islam. Mas será que os judeus a reconhecem?
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