O livro Palestina: um olhar além do exílio, dos autores Nilton Bobato e Paulo Porto, é um relato vivo, breve e impressionante. A obra é fruto do relato oriundo de uma missão solidária ao povo palestino, realizada entre 14 e 20 de novembro de 2015. A mesma delegação foi coordenada pelo brasileiro de origem árabe-palestina, Jihad Abu Ali. Ler o relato é uma viagem no passado recente, ao menos em termos de memória coletiva. Se nos Territórios Ocupados em 1948 (a Nakba) e em 1967 (a Naksa), a conjuntura política de certo modo vem mudando favoravelmente para a luta anti-imperialista desde os ataques a Gaza de 2014, no caso brasileiro, o inverso é absolutamente aplicado. Portanto, ler as linhas resenhadas é uma volta no tempo recente, em todos os sentidos, incluindo a política externa do Brasil no período.
Há duas outras características importantes do livro vale ressaltar. Uma é a parte ilustrativa: recheado de fotos em preto e branco, com ângulos muito didáticos e composição em harmonia com a diagramação. A editoração da obra física beira a perfeição e torna a leitura mais amistosa; complementa a estrutura do texto, como um caderno de viagens e cenas cinematográficas. Se sente a ocupação a cada linha, frase, a opressão do invasor está em todas as vírgulas, sentimos os momentos de tensão onde “colonos” armados pelo tesouro dos EUA podem simplesmente atirar em residentes. Respeitando essa forma de escrita quase que visual, como um roteiro de cinema documentário, mantive a resenha com grandes blocos de texto para inserir o leitor dentro das cenas reais.
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Cruzando pela fronteira da Jordânia
“Na primeira parada, uma hora após nossa saída (de Amã) a notícia era de que chegaríamos a King Hussein, a estação de controle para entrada em território palestino, no limite do horário.
Nessa parada começamos a ter uma demonstração dos métodos israelenses de controle. A primeira e mais forte sensação da viagem. Estávamos indo à Palestina, Cisjordânia, no entanto o controle da fronteira era totalmente israelense. Não havia um único palestino trabalhando naquela área de aduana.
Como é possível a ONU reconhecer o direito da Palestina ser um Estado, se continua permitindo que outro Estado controle a sua fronteira?” (página 20).
O Apartheid é a cara da ocupação
“Fiquei ao lado esperando o Jihad. A de cabelos pretos (a policial boa) entregou o passaporte para a loira (a policial má) que, fazendo o papel de competente defensora da estrutura de Israel de humilhar qualquer cidadão de origem palestina, foi direto ao assunto: queria saber o nome dos parentes que teria na Palestina, onde nascera. Não adiantou dizer que era brasileiro, que trazia um passaporte brasileiro, o seu nome foi suficiente para ela afirmar que estava detido para averiguação.” (página 23).
Jericó, Burin, Nablus e outras cidades sob o cerco dos invasores
“‘Aquela rodovia bem iluminada’, disse (o guia) mostrando um claro contorno de luzes, que desenhavam uma autoestrada, ‘naquela nós não podemos ir, é dos judeus’. Nos indicou o paredão que continuava acima de nossas cabeças e denunciava alguns bunkers do exército israelense, instalados para vigiar toda a região e proteger aqueles outros pontos de luzes mais fortes; apontava para pequenas áreas mais iluminadas na região: ‘são colônias judaicas instaladas em nosso território’.
“‘E, aqueles pontinhos luminosos, mais adiante, são casas de veraneio de judeus, que margeiam o Mar Morto’, continuou a relatar o prefeito e guia”. (página 40)
“O governo israelense identifica judeus ou pessoas que se apresentam em Israel como judeus, oferece para eles terras na Cisjordânia, lhes dá segurança, água, moradia, energia elétrica e insumos agrícolas. Com a força do exército mais caro do mundo , ocupa a área rural da palestina, instala esses judeus oriundos de várias partes do planeta e vai gradualmente ocupando o território”. (página 41)
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Check points de Ramallah
“Nas proximidades de Ramallah tivemos outra experiência, que começou a ilustrar a sensação de ódio a que são cometidos os colonos judeus. No lado esquerdo da avenida, um portão dava acesso a uma colônia judaica com uma faixa de pedestre. Do lado direito, um israelense iniciava a travessia da avenida, paramos o veículo. Já havia dado dois passos, quando olhou para a esquerda e provavelmente identificou a placa do nosso veículo. Percebendo que se tratava de um carro palestino, colocou a mão na cintura (segurando um revólver), parou no meio da travessia, observou-nos com expressão de ódio e seguiu em passos muito lentos, com a mão direita na cintura e nos olhando de soslaio.” (página 51)
No inferno dos check points e a impossibilidade de transitar no território palestino, os autores recordaram uma orientação básica. “‘podemos ficar mil horas falando da vida na Palestina, mas nada que um minuto de check point revele mais’. A tensão em cada checkpoint conta muito mais sobre a ocupação israelense do que qualquer narrativa que possamos fazer.” (página 52/53).
O cotidiano tenta reorganizar a vida das famílias sobrevivendo sob a ocupação de invasores estrangeiros. “No meio desse inferno os palestinos tentam seguir uma vida normal, sorridentes e hospitaleiros, tentam responder aos israelenses com uma vida digna, apesar deles.” (página 53).
De Burin a Nablus, mais tensão e a presença das forças militares da ocupação
“Estava no programa uma visita a Nablus, mas na saída de Burin descobrimos que o acesso a cidade histórica e principal município daquela região estava fechado pelo exército ocupante, que tentava prender mais alguns palestinos. Como a distância entre Burin e Nablus era de oito quilômetros e a fila ultrapassava os limites do local onde estávamos, concluímos que não chegaríamos a Nablus naquele dia. Mas nem todos têm opção de voltar, como nós tínhamos. Akram Borini, um dos músicos que iria conosco, seguiu mesmo assim, por estradas vicinais nas montanhas, pois sua esposa o aguardava em Nablus”. (página 75).
Qualquer semelhança com a África do Sul do Apartheid, não é nenhuma coincidência. Qualquer coincidência com a França sob a ocupação nazista apresenta toda verossimilhança. Toda situação comparativa com a Argélia debaixo das botas coloniais de mercenários pagos por autoridades francesas, é perfeitamente identificável.
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Al Quds ocupada
“Uma rápida mirada para trás e percebi que eles voltavam (dois jovens colonos portando armas automáticas). Entendi que poderiam provocar. E provocaram, passando entre nós como se não houvesse nenhum outro local, esbarrando em mim.
Alguns minutos depois os encontraríamos novamente na frente de uma casa, com bandeiras de Israel hasteadas. De acordo com Bashiti, o nosso guia, as bandeiras estavam lá, assim como os colonos, para provocar os palestinos já que aquela era uma região árabe. E novamente os dois jovens armados, agora acompanhados de um terceiro, fizeram questão de cruzar conosco”. (página 84).
A ocupação rouba terras e prática a apostasia
“Subimos na laje superior ao apartamento de Jerusalém, de onde podíamos ver a cúpula da Mesquita da Rocha e também a iluminação da cidade ocidental. Marwan nos mostrou as luzes de uma sinagoga e afirmou que o terreno onde ela está construída era de seus avós até a ocupação. E não só, como todas as outras construções que nossa vista alcançava, eram dos palestinos até 1948. ‘Tomaram a nossa terra, construíram sobre nossas propriedades’.” (páginas 88 e 89)
A ocupação no meio da vida em família
“O casamento entre Marwan e Shireen, como muitos na Palestina ocupada, driblam os cartões azuis e verdes (Marwan tem o cartão azul, de família originária da cidade, que o permite viver em Jerusalém já Shireen, que deveria herdar o direito de residência do marido, continua impedida por conta da prisão ocorrida na adolescência, há mais de duas décadas). ‘Mas a maioria dos que se casa com residentes em Jerusalém, não tem nem o direito à visita’, relata Shireen”. (página 89).
A certeza da vitória através da tenacidade
“Tive esta certeza ainda no início da viagem, quando em conversa com o Governador Geral de Jericó perguntei a ele como via o futuro do povo palestino. Ele me olhou nos olhos e disse calma e firmemente: ‘Israel é como um satélite, um bólido lançado no espaço, algo artificial. Com o tempo se desintegrará, desaparecerá e nós, como sempre, seguiremos aqui!’. Que assim seja.” (página 117).
A leitura de uma obra como esta, reforça com vigor os relatos reais e a certeza de que a resistência do povo palestino consegue ser mais forte do que a fábrica de mentiras apoiando a ocupação sionista. Nenhuma população do planeta poderia ser invadida e dominada por pessoas estrangeiras fortemente armadas. A vitória está na tenacidade de quem resiste e no apoio da diáspora árabe que jamais abandonará a Palestina.
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