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Um pouco da literatura árabe nas Américas

Memorial para o escritor e poeta Kahlil Gibran em Washington, Estados Unidos [rachaelvoorhees/Flickr]

A presença das colônias árabes nas Américas do Norte, Sul e Central remonta ao século XIX. Em sua maioria, os imigrantes árabes vieram em busca de melhores condições de vida, e atrás da prosperidade. Além disso, eles trouxeram a sua cultura, hábitos e costumes. Houve entre estes imigrantes uma elite intelectual e cultural que chegou a fundar publicações periódicas árabes como jornais e revistas. Assim, entre o final do século XIX e o início do século XX, a atividade cultural e literária árabe foi intensa, principalmente ao norte, nos Estados Unidos, e, ao sul, no Brasil.

Livro antigo [pixhere/ Creative Commons]

A atividade literária árabe nas Américas, que se deu nos séculos XIX e XX, não ficou somente no limite do continente americano, mas ultrapassou a sua influência para todo o mundo árabe, e continua a ter a sua influência e importância hoje. Basta dizer que Gibran Khalil Gibran, o segundo poeta mais vendido no mundo depois de Shakespeare, nasceu deste movimento literário árabe americano, tendo sido a sua expressão máxima. Outro nome deste movimento, que também ficou eternizado, é Mikhail Naimy. Ambos nasceram nos territórios do atual Líbano, no último quarto do século XIX, na época sob domínio do Império turco-otomano. Os dois emigraram para os Estados Unidos, onde fizeram carreira literária, nas línguas árabe e inglesa. Os dois nunca se casaram. Gibran morreu precocemente, com 48 anos, em 1931, nos Estados Unidos, sem conseguir retornar à sua pátria, como era o seu sonho. Mikhail Naimy viveu quase um século de vida, morreu no final da década de 1980 no Líbano, para onde retornou logo após a morte do seu amigo Gibran.

Gibran e Naimy foram os protagonistas, em 1920, na fundação da Liga da Pena (Al-Rabita Al-Qalamiya), que reuniu a elite dos intelectuais árabes nos Estados Unidos na época. Esta liga tinha Gibran como presidente e Naimy como secretário-geral. O objetivo era promover a literatura árabe nas Américas e no mundo. A liga era composta por dez membros, todos homens de letras, entre poetas e escritores, entre eles o poeta Eliya Abou Madi e o poeta Nassib Arida. Após a morte de Gibran, em abril de 1931, vítima de tuberculose, esta liga desintegrou-se.

A influência da Liga da pena ultrapassou os limites do espaço e do tempo e todo o mundo árabe teve profunda influência pelas inovações literárias que trouxe. Mas a sua influência não restringiu-se ao mundo árabe. Os dois protagonistas principais da liga tiveram influência e alcance global. Gibran, com a sua obra-prima, “O Profeta”, escrita originalmente em inglês, obteve sucesso esplêndido, o qual persiste até hoje. As outras obras de Gibran também foram bem sucedidas e difundidas, mas “O Profeta” teve e tem a liderança até hoje. Naimy, com a sua obra “Mirdad”, escrita em inglês também, teve sucesso internacional. Embora o trabalho de Naimy seja mais extenso, até porque viveu mais, foi o de Gibran que virou símbolo e inspiração para o Líbano. Gibran é, sem dúvidas, um dos símbolos máximos do Líbano moderno, embora tenha vivido a maior parte de sua curta existência nos Estados Unidos, onde fez toda a sua carreira como escritor, poeta, pensador e artista.

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 É famosa e amplamente divulgada e conhecida, nos meios intelectuais e literários árabes, a história de amor platônico que uniu Gibran com a intelectual e escritora libanesa May Ziyadeh. Os dois amantes nunca se encontraram fisicamente. Chegaram a trocar correspondências por cerca de vinte anos. Ele, no continente americano, e ela, no Oriente Próximo, entre Líbano, Síria e Egito, foram unidos por uma história de amor platônico marcada pelo ofício e paixão pelas letras. May Ziyadeh, que foi uma das expoentes da literatura árabe feminina moderna, teve um triste fim: morreu num manicômio. Há suspeitas de que a sua loucura tenha sido consequência da morte do seu amado Gibran.

A influência da obra da Liga da Pena sobre a literatura árabe como um todo foi profunda, ampla e permanente. Marcados pela experiência da emigração, e pelas dificuldades inerentes à vida de expatriados, todos os membros da Liga da Pena desenvolveram uma obra de alcance humanístico e características um tanto quanto marcadas pelo misticismo, romantismo e espiritualidade. A apologia ao amor entre os homens e à tolerância inter-religiosa e inter-racial fazem parte da linha-mestra do seu pensamento. Aliado a tudo isso, eles tiveram uma rejeição aos moldes antigos da literatura árabe, marcados pelo refinamento da forma e rebuscamento da linguagem. Os homens da Liga da Pena escreveram uma literatura marcada pela simplicidade da linguagem, sobriedade da forma, mas profundidade dos temas abordados, de alcance humanístico.

Todos os membros da Liga da Pena eram imigrantes dos atuais Líbano e Síria. E todos, sem exceção, eram de religião cristã. Gibran, por exemplo, era cristão maronita originário da cidade de Becharre, no norte do Líbano, onde fica o bosque dos cedros milenares, que foi o que sobrou das florestas de cedros que cobriam as montanhas do Líbano nos séculos de outrora. A identidade religiosa destes homens revela alguns fatos. Por exemplo, podemos deduzir que a imigração árabe inicial para as Américas era predominantemente cristã. Um outro fato a ser destacado é a influência que os cristãos tiveram na literatura árabe moderna, principalmente os levantinos. O Egito, o centro cultural árabe e islâmico maior, abunda em escritores muçulmanos. Entretanto, no Levante, foram os cristãos que tiveram a vanguarda.

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O Brasil foi o único país das Américas, fora os Estados Unidos, a ter uma atividade literária árabe, embora de expressão e influência bem menores que a potência norte-americana. O pólo desta atividade foi a cidade de São Paulo- SP. Foi na capital paulista que em 1933 foi fundada a Liga Andalusiana (`Usbat Al-Andalus), sob a presidência do poeta libanês Michel Naaman Maluf. O nome Al-Andalus é o nome árabe da Ibéria sob o domínio árabe-islâmico na Idade Média. Um dos membros proeminentes desta liga é o poeta libanês Rachid Salim Al-Khoury, que assumiu a presidência desta liga em 1958, por pouco tempo, pois retornou em definitivo ao Líbano, onde ficou por mais de vinte anos, até a sua morte em 1984.

Assim como a sua colega norte-americana, a liga literária árabe brasileira era composta por escritores, poetas e intelectuais árabes, todos de religião cristã. Isso revela, como no caso norte-americano o caráter da imigração árabe. No entanto, a Liga Andalusiana não teve a mesma glória da Liga da Pena. É verdade que teve a sua contribuição para a literatura árabe e para a comunidade árabe do Brasil, mas nenhum dos seus membros teve, nem de perto, sucesso como o de Gibran ou Naimy.

Atualmente, e a partir da segunda metade do século XX, a literatura árabe nas Américas vive período de decadência após o apogeu alcançado no final do século XIX e início do século XX. Hoje, há intelectuais, escritores e poetas árabes nas Américas do Norte, do Sul e Central. No entanto, nem de longe, há algo parecido com o que foram a Liga da Pena e a Liga Andalusiana. Nisso a literatura árabe perde, as comunidades árabes nas Américas perdem e o mundo perde. É paradoxal que 80 ou 90 anos atrás uma cidade como São Paulo tivesse periódicos regulares de bom nível em língua árabe e que hoje a comunidade árabe não tenha um único jornal árabe de respeito.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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