Solidariedade contra o racismo na Euro não deveria ser ‘controvérsia’

Uma nova “controvérsia” esportiva emergiu quando atletas que competem no atual Campeonato Europeu de Futebol de 2020 (UEFA Euro 2020) ajoelharam-se antes do apito inicial em protesto ao racismo — grave problema que assola os estádios e vestiários há anos. Enquanto alguns jogadores e equipes escolheram ajoelhar-se, outros optaram por não fazê-lo. Desculpas esfarrapadas como “os jogadores não estão prontos para isso” e “política deve ficar de fora do esporte” retornaram às manchetes.

O racismo no esporte é um problema bastante concreto, embora não apartado do racismo na sociedade em geral. De fato, as reações à postura de princípios tomada por muitos atletas refletem em si a enorme influência de movimentos conservadores, populistas e chauvinistas por toda a Europa — ao ponto deles próprios definirem temas sensíveis ao público comum. A política, portanto, já reside historicamente nos estádios de futebol e “ajoelhar-se” é apenas uma das reações possíveis a manifestações pejorativas que maculam o esporte.

Por exemplo, a seleção da França tem diversos jogadores negros e muçulmanos de enorme destaque. Sob ataques da imprensa e de políticos de direita e extrema-direita, em 15 de junho, toda a equipe chegou ao acordo de não mais ajoelhar-se no início das partidas.

Neste exemplo, o racismo no esporte de fato prevaleceu sobre a solidariedade antirracista. A autoridade máxima do futebol em Paris, a Federação Francesa de Futebol (FFF), sequer reconhece a necessidade de debater a questão. Noël le Graët, presidente da entidade esportiva, chegou a declarar que “racismo não existe”, após um incidente em setembro último, durante uma partida entre o Olympique de Marseille e o Paris Saint Germain, no qual o jogador brasileiro Neymar foi chamado de “macaco filha da puta” pelo atleta espanhol Álvaro González.

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Não apenas os incidentes racistas durante jogos de futebol demonstram aumento e são bem documentados na França e em todo o mundo, como o insulto “macaco” é particularmente popular entre o público europeu que entoa — por vezes, em grupos enormes — gritos racistas contra jogadores negros. Quando tamanho escândalo enfim recebeu atenção nacional na Itália, uma corte descartou o caso como “infundado” e torcedores registrados em câmera aos gritos de “macaco” foram “absolvidos incondicionalmente”.

Nessa conjuntura, é ainda lamentável que apenas metade da seleção italiana tenha se ajoelhado antes do jogo contra o País de Gales, em 20 de junho, e decidiu abster-se por completo da iniciativa logo a seguir. É revelador que, embora o racismo no esporte prevaleça, a solidariedade antirracista é considerada “desnecessária” e “divisiva”.

Romelu Lukaku, centroavante da Bélgica, ajoelha-se em apoio ao Black Lives Matter, antes da quarta de final do Campeonato Europeu de Futebol de 2020 (UEFA Euro 2020) contra a seleção da Itália, na Arena Munique, Alemanha, 2 de julho de 2021 [Matthias Hangst/Getty Images]

A verdade é que o futebol, como qualquer outro esporte, é um reflexo de nossa sociedade; nossa união e nossas divisões; nossos privilégios e nossas desigualdades socioeconômicas; nossos vínculos comunitários; sim, nosso racismo de cada dia. Porém, ao invés de tentar compreender tais fenômenos e, quando preciso, alterar tais relações, alguns meramente optam por ignorá-las por completo.

O pressuposto de que “esporte e política não se mistura” não é somente ilusório — pois ignora a premissa fundamental de que o esporte é expressão direta da realidade — como também é uma forma desleal de desviar atenção de questões essenciais concernentes a todos. Ouvimos a mesma ladainha durante a era do apartheid na África do Sul e não é diferente hoje da represália contra os esforços de atletas, homens e mulheres, para boicotar o apartheid do Estado de Israel, um regime discriminatório que incidentalmente é membro da União das Associações Europeias de Futebol (UEFA) e disputa seus torneios, embora situado no continente asiático.

A lógica brutal e falaciosa recai na mesma categoria de “todas as vidas importam”, uma resposta populista e chauvinista ao grito legítimo por justiça racial do movimento “Black Lives Matter”. Este serve para ilustrar — efetivamente, contestar — a violência desproporcional contra os negros nos Estados Unidos meramente pela cor da sua pele. O primeiro slogan, no entanto, embora teoricamente razoável, serve para sabotar a urgência de confrontar o racismo sistêmico em nossa sociedade e suas instituições.

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Quando Colin Kaepernick, jogador de futebol americano, ajoelhou-se durante o hino nacional em 2016, sua intenção era protestar contra discriminação. Não havia qualquer motivação em “profanar valores e símbolos nacionais”. Seu objetivo era maior do que vencer a partida: Kaepernick desejava compelir milhões de espectadores para além de sua zona de conforto e expor questões de importância universal. Seu ato representou um protesto de enorme visibilidade contra o assédio imposto às comunidades negras nos Estados Unidos. Como ele próprio um homem negro com acesso às plataformas de mídia, Kaepernick pressupôs corretamente deter um dever moral em denunciar o racismo — e assim o fez. Mas aquele ato pacífico foi logo descrito pelo então governo republicano e parte da imprensa e da sociedade como “traição” e custou a carreira profissional do atleta.

O episódio repercutiu no mundo e respostas violentas, frequentemente racistas, foram todas motivadas politicamente, provando — sem intenção, imagino — que a relação entre política e direitos humanos, por um lado, e esporte e entretenimento, por outro, é impossível de ser evitada. Ironicamente, aqueles que insistiram que Kaepernick e outros que seguiram seu exemplo violam a “santidade do esporte” não tem qualquer pudor sobre outros atos essencialmente políticos em cerimônias esportivas, como o hino nacional, a exibição de bandeiras e mesmo canções nacionalistas nas arenas. Nos Estados Unidos, soldados são homenageados antes dos jogos por seu papel em diversas guerras em todo o globo. Eventualmente, jatos da aeronáutica sobrevoam o estádio para relegar ao público uma sensação extasiada de força e poder militar. Por que tais atos políticos são aparentemente aceitáveis em eventos esportivos, mas um único homem negro de joelhos, em sua luta solitária por milhões de inocentes brutalizados pela polícia, é descrito como traidor?

O esporte pode, é claro, ser fonte de harmonia e união. Em 24 de junho, testemunhamos a homenagem mútua entre Cristiano Ronaldo e Ali Daei, quando o centroavante português alcançou enfim o ex-atleta iraniano no recorde de gols por uma única seleção. Infelizmente, o esporte também é vazão a disputas políticas e sociopolíticas com raízes profundas.

O racismo é uma doença, como um câncer societal. É preciso ser expurgado dentro e fora do campo. É verdade que ajoelhar-se não dará fim ao racismo, mas representa um ato de solidariedade contundente para dar início à conversa — uma expressão de princípio que deve ser aplaudida e não condenada; jamais uma “controvérsia”.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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