Em 1978, a Unesco decidiu fazer comemorações mundiais que seriam realizadas em 1980, ano do milésimo aniversário de Avicena. A comemoração foi realmente realizada na cidade de Damasco, capital da Síria, na data marcada. Foi uma homenagem mais do que justa e merecida àquele que pode ser considerado o maior gênio filosófico e médico do Islã, e um dos maiores gênios de toda a História da Humanidade. Avicena teve uma contribuição imensa, e que ultrapassa os limites do tempo e do espaço, para o conhecimento e a cultura universais. A sua obra magnífica eternizou o seu nome, e deu-lhe lugar de destaque no rol das grandes personalidades de todos os tempos.
Avicena, ou “Ibn Sina”, ou “filho de Sina” (referência a um ancestral), como é conhecido na língua árabe, nasceu no ano de 980, no atual Uzbequistão, numa cidade chamada Afshna, próxima à cidade de Bukhara. O seu pai era da cidade de Balkh, que fica no atual Afeganistão. Desde cedo, este menino, nascido em território uzbeque, mostrou sinais de excepcional talento e inteligência esplêndida. Ainda na infância, memorizou o Nobre Alcorão. Na adolescência, já era um autodidata invejável, com capacidade para aprender as ciências mais difíceis e a absorver conhecimentos eruditos vastos das mais diversas áreas.
Com apenas dezesseis anos de idade, Avicena iniciou os estudos em Medicina. Seu progresso foi tão espetacular e rápido, que aos dezessete anos. com as suas habilidades médicas, ele salvou a vida de um príncipe e, por isso, foi nomeado médico particular deste príncipe, o que lhe rendeu, além da honraria, a oportunidade do acesso à biblioteca rica do príncipe, o que serviu para aprofundar e ampliar os conhecimentos do jovem médico. Aos dezoito anos, Avicena já era um médico renomado, com habilidades largamente reconhecidas. Mesmo tão jovem, este doutor consagrado costumava tratar os doentes pobres e necessitados gratuitamente, tendo a sua sobrevivência garantida pelo salário que recebia do príncipe.
A obra mais conhecida de Avicena é o seu tratado médico intitulado “Cânone”. Este tratado médico logo se tornou uma referência mundial em Medicina, tendo sido traduzido para o latim. Sobreviveu como uma das principais referências médicas até o século XVII nas universidades europeias. Este tratado clássico sobreviveu até os nossos dias, embora a sua importância hoje seja apenas de valor histórico e cultural, já que a maior parte dos conhecimentos nele contidos já tornaram-se obsoletos. Estes conhecimentos já foram outrora um dos principais guias científicos para a prática da arte médica.
A perícia e habilidades médicas de Avicena não se restringiam a uma especialidade médica somente, mas abarcavam as diversas especialidades médicas. Mais do que diagnosticar e tratar doentes, Ibn Sina descreveu doenças e entendeu processos patológicos, mesmo numa época em que a tecnologia médica não era desenvolvida. Foi o primeiro médico a descobrir a parasitose intestinal chamada ancilostomíase, a qual Avicena chamou de “o verme redondo”. Descreveu também a elefantíase, provocada por parasitas chamados de filárias. Foi capaz de fazer descrições originais e precisas de doenças como meningite e calculose de bexiga urinária. Mas a sua perícia não se restringia somente às especialidades clínicas, já que ele tinha um excelente domínio de técnicas cirúrgicas. E talvez seja mais surpreendente de tudo o fato de Avicena afirmar, alguns séculos antes da invenção do microscópio, que doenças infecciosas eram causadas por seres vivos que não podem ser vistos a olho nu!
LEIA: Ibn Arabi: A genialidade do maior místico do Islã
Mais do que exímio médico e cientista, Avicena foi um genial filósofo. O “líder dos sábios” (Al-shaikh al-rais, em árabe , epíteto pelo qual ficou Avicena eternizado) é um dos maiores polímatas do Islã, e um dos maiores de toda a História Universal. A sua mente esplêndida discutia filosofia e metafísica com o mesmo brilhantismo e genialidade com as quais discutia e escrevia sobre astronomia e música. Ele era ávido por conhecimento e sabedoria desde a mais tenra idade. As suas idéias filosóficas contrastam em certos pontos com a ortodoxia religiosa islâmica. Este fato fez com que fosse considerado um apóstata por muitos teólogos islâmicos.
De sua extensa obra de mais de duzentos livros de sua autoria, somente sobreviveram um pouco mais de setenta até os dias atuais. Embora a língua mãe de Avicena seja a persa, ele escreveu a maior parte de sua obra em árabe, a língua mundial erudita das ciências, filosofia e maior parte das áreas do conhecimento na época. Aqui vale lembrar que Avicena era poeta também, compondo versos para transmitir conhecimentos médicos e filosóficos. Do seu legado poético, uma dos seus poemas mais conhecidos, e ainda hoje compreendido pelo leitor árabe mediano, é o seu poema sobre a alma humana.
Uma das passagens mais citadas e conhecidas da biografia de Avicena remonta à sua juventude. Conta o “líder dos sábios”, em, uma de suas obras, que tinha muitas dificuldades em compreender a “metafísica de Aristóteles”. Esta dificuldade a ler esta obra repetidas vezes, chegando a contabilizar quarenta vezes, ao ponto de Avicena memorizar esta obra do grande filósofo grego, sem, no entanto, a compreender. Foi o acaso que levou-lhe às mãos uma obra de Al-Farabi, o grande filósofo muçulmano, a qual continha as chaves para a compreensão da metafísica de Aristóteles. Em sinal de grande felicidade e profunda gratidão a Deus por este feito, Avicena fez doações em dinheiro aos pobres. Este episódio revela o grau de amor e dedicação que Avicena tinha pelo conhecimento e pela sabedoria.
A genialidade exuberante e incontestável de Avicena atraiu as atenções a ele e garantiu-lhe passagens por diversas cortes de soberanos locais. Em uma destas passagens “o príncipe dos sábios”, teve que sair foragido e lançar mão de disfarce, uma vez que envolveu-se em disputa política. Avicena inclusive chegou a ser ministro no governo de um soberano local, chegando a acompanhar as tropas em marcha e batalha, ocasiões nas quais seus serviços médicos e cirúrgicas eram de valor e importância inestimáveis. Mesmo tendo tido esta vida intensa na área da política, Avicena jamais deixou de lado as suas atividades intelectuais. Ele encontrava tempo para ler, escrever as suas obras e ensinar discípulos.
LEIA: Maimônides: a influência do Islam sobre o maior filósofo judeu
O final de vida de Avicena foi bastante emblemático. Com diagnóstico de câncer de cólon, e ciente da morte iminente, Avicena passou os últimos dias de sua vida lendo o Nobre Alcorão a cada três dias, orando e praticando obras de caridade. Doou dinheiro aos pobres e necessitados e libertou os seus escravos antes de morrer, num ato de penitência. O “líder dos sábios” dizia que gostava da vida curta e intensamente vivida. De fato, ele morreu relativamente jovem, aos 57 anos de idade, com uma vida intensamente vivida. Se os seus ensinamentos filosóficos foram connsiderados hereges por muitos teológos islâmicos, os últimos dias de Avicena revelam uma fé islâmica arraigada e uma devoção forte ao credo islâmico.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.