Portuguese / English

Middle East Near You

Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

O que eu, cristã, aprendi com as mulheres muçulmanas no campo de refugiados durante o Eid al-Adha

A jornalista Lucia Helena Issa e a refugiada Maryam K., que nasceu, cresceu e vive em um campo de refugiados em Beirute, esperando que Israel cumpra as leis internacionais que prevêem o retorno de palestinos para sua própria terra.[Arquivo pessoal]

Chovia assustadoramente na noite em que desembarquei em Beirute pela segunda vez, dessa vez como voluntária e autora de um projeto humanitário, e não apenas como jornalista. A ideia era ficar mais tempo e viver no Campo de Chatila como se eu fosse uma refugiada, sentindo a dor de ser proibida de voltar à própria terra há décadas, comer apenas o que elas comiam, dormir em casas improvisadas com tetos de metal e blocos de concreto, ouvir suas histórias, suas esperanças, seus medos e seus sonhos.

O desejo de fazer uma pequena diferença na vida das mulheres e crianças refugiadas começou depois de  minha primeira estadia nos campos de refugiados palestinos em em Beirute. Depois de voltar do Oriente Médio, e nos momentos em que a guerra na Síria se intensificava, em que terroristas armados pelos EUA  estavam matando milhares de pessoas, e também no momento em que aconteciam os piores atentados em Beirute, Istambul e Paris, decidi que não conseguiria mais viver se eu não voltasse ao campo de refugiados para viver por um tempo e para  levar algum tipo de ajuda  concreta. Um pouco antes, dia 4 de abril, dia do meu aniversário, pedi a alguns amigos, ao meu namorado na época e à minha família, que não me dessem presentes de aniversário, pois nenhum daqueles presentes me faria feliz de fato. Pedi que doassem o valor do presente que comprariam para mim para que eu pudesse levar brinquedos e material escolar para mais de 300 crianças que viviam num campo onde só há luz  durante algumas horas por dia, onde os fios elétricos precários e desprotegidos  passam pela água que se acumula nas vielas escuras e já eletrocutaram dezenas de crianças, onde falta água, onde 30 por cento das crianças refugiadas que agora chegavam do campo palestino de Yamourk, nos arredores de Damasco, não poderiam frequentar a escola do campo por não terem dinheiro sequer para comprar cadernos e livros, onde  os abrigos construídos com tetos de placas de metal  estavam cada vez mais lotados e o números de refugiados passara de 12 mil para 16 mil pessoas vivendo em poucos metros quadrados, em um dos lugares mais sofridos e esquecidos do mundo.

Muitos amigos me diziam que era loucura ficar num campo de refugiados naquele momento, com tantos atentados acontecendo no Oriente Médio, mas diante da minha determinação e teimosia, muitos abraçaram o projeto, e meses depois eu estava novamente em um avião a caminho de Beirute.

Alegria, medo, ansiedade, esperança. Todas as emoções humanas primitivas se misturavam dentro de mim. E dessa vez chegaria exatamente na semana do Eid al Adha, a mais importante celebração islâmica e que eu queria muito testemunhar e compreender.

LEIA: Eid al-Adha , a Festa do Sacrifício – Entrevista com o Sheik Mohamad Bukai

Para que você possa entender melhor, essa é a data em que todos os muçulmanos do mundo se unem, celebram a vida, trocam presentes e desejos de paz, harmonia e prosperidade, exatamente como nós, cristãos, fazemos durante o Natal.

A data relembra o momento em que o Profeta Abraão (o profeta e patriarca que deu origem ao monoteísmo professado pelas religiões judaica, cristã e islâmica)  estava a caminho de sacrificar seu próprio filho, Ismael, como prova de sua imensa fé em Deus, cumprindo um pedido divino, mas descobriu que Deus o impediria de vivenciar tamanha perda, colocando um cordeiro para ser sacrificado no lugar de Ismael.

Uma história muito parecida com a que havia sido contada a mim por meus pais cristãos, em que a criança a ser sacrificada era Isaac, o segundo filho de Abraão.

Eu era a única naquele momento em Chatila e os mais de dez mil refugiados muçulmanos do campo receberam essa jornalista cristã com imenso afeto, alegria e gratidão.

Aprendi naqueles dias com as minhas irmãs muçulmanas que o Eid al-Adha, ou a Festa do Sacrifício, acontece geralmente depois do Hajj, a peregrinação a Meca, para os que podem fazê-la. Ele é comemorado a partir do décimo dia do mês de Dhu al-Hijjah, o último mês do ano lunar, e que a festa tem duração de quatro dias. Foi um dos momentos mais inesquecíveis da vida dessa jornalista. Com as doações recebidas, com a ajuda de todas as mulheres do campo, de uma ONG da Noruega, com os carneiros e os ingredientes comprados com muito trabalho e união, elas conseguiram fazer uma das festas mais bonitas em que já estive em toda a minha vida e prepararam os carneiros, o tabule e o pães árabes mais deliciosos do mundo!

Às vezes me perguntam o que havia de tão especial naqueles pratos. Acredito que os ingredientes mais raros daqueles pratos eram a gratidão e a esperança.

Aprendi com minhas irmãs muçulmanas, em meio às casas com janelas sem vidro, e feitas de blocos e metal, em meio à luz precária das lanternas daquela noite, em meio à fogueira milenar, que o Eid nos emociona e está  espiritualmente ligado ao Eid al–Fitr, a festa que marca o fim do jejum do Ramadã, e que as duas celebrações são marcadas pela solidariedade aos mais pobres, pela partilha do carneiro com aqueles que sentem fome, pela partilha de crianças com outras crianças que têm ainda menos do que elas, e pela alegria que uniu a todos naquela noite, uma cristã e seus milhares de irmãos muçulmanos.

Descobri com minhas irmãs muçulmanas, vivendo em alguns dos lugares mais feios do mundo, estão entre as pessoas mais bonitas que já conheci. Descobri também que Jesus é imensamente amado por elas e que a Virgem Maria é citada mais de 600 vezes no Alcorão e é considerada por elas um exemplo de amor, de doação de si mesma e de solidariedade.

Descobri com minhas irmãs muçulmanas, durante o Eid Al Adhan, algo sobre o qual Jesus falou também: a religiosidade sem a solidariedade, sem a ajuda aos mais precisam de alimentos e de esperança, pouco ou nada significa.

Descobri com minhas irmãs muçulmanas e também pesquisando sobre a origem dessa religião que, apesar de todo o discurso de ódio alimentado no Ocidente contra o o Islã, apesar de todas as distorções feitas para incitar esse ódio, não há uma linha sequer no Alcorão que fale sobre a Mutilação Genital Feminina, ou sobre o “dever” de mutilar sexualmente uma menina assim que ela nasce. Pelo contrário, há no Alcorão, como constatei ao lê-lo, referências à beleza e sacralidade do ato de amor entre um homem e uma mulher e ao prazer da mulher. Ao contrário do que dizem os odiadores e os islamofóbicos, a Mutilação Genital Feminina (MGF), o ato de cortar parte do clitóris para que a mulher jamais sinta prazer durante o ato sexual, é um ritual absolutamente tribal, tristemente presente em países africanos como a Etiópia, um ritual que nasceu muito antes do islamismo, que foi proibido em todos os países de maioria muçulmana e tem sido combatido pelas mulheres muçulmanas em vários países do mundo.

LEIA: Gaza prepara animais para o Eid Al-Adha

Descobri com minhas irmãs refugiadas muçulmanas que o Profeta foi o primeiro governante do mundo a lutar contra o assassinato de meninas, de bebês do sexo feminino que eram mortas aos milhares tanto no Oriente Médio quanto na Europa, quando uma família da zona rural, com pouco conhecimento, desejava um menino e não queria criar a terceira ou quarta menina que nascia sem que eles a desejassem. Na Europa, muitas dessas meninas eram entregues à Roda dos Rejeitados ou a outras famílias, e na Península Arábica, muitas eram mortas. O Profeta foi o primeiro governante que proibiu essas atrocidades, afirmando que a vida das meninas era tão sagrada quanto a dos meninos.

Aprendi com minhas irmãs refugiadas muçulmanas e com as pesquisas que faço sobre a origem dessa religião que não há uma linha sequer no Alcorão que proíba a mulher de trabalhar ou de estudar e frequentar a universidade. A busca pelo conhecimento é uma das colunas vertebrais da religião e foi distorcida também por muçulmanos extremistas de algumas regiões do mundo. As mulheres muçulmanas têm o direito de estudar, trabalhar e receber o mesmo salário de um homem há mais de 1400 anos, enquanto no Brasil e em toda a América Latina, nós, cristãs, muitas vezes ainda não recebemos o mesmo que os homens e várias pesquisas revelam uma diferença de até trinta  por cento.

Aprendi com minhas irmãs refugiadas muçulmanas e com minhas pesquisas que confirmavam o relato delas, que o Profeta, há mais de 1400 anos, foi o primeiro líder religioso a afirmar que as mulheres tinham direito à herança de seus pais tanto quanto seus irmãos do sexo masculino. Na Europa cristã, isso só foi possível no século XVIII, pois durante toda a Idade Média, apenas os filhos do sexo masculino tinham direito às terras da família.

Aprendi que o ódio e o medo do islamismo, assim como a desumanização dos muçulmanos em geral, são muito úteis para os fabricantes de armas, os senhores das guerras e os que já mataram mais de um milhão de mulheres e crianças bombardeando e destruindo o Iraque, a Síria, o Afeganistão e a Líbia. Aprendi com minhas irmãs refugiadas muçulmanas que a esperança e a vontade de lutar são muito mais fortes do que a dor, o medo, o Apartheid e a opressão.

Aprendi que somos muito mais capazes de superar a adversidade do que imaginamos ser.

A jornalista Lucia Helena Issa com crianças no campo de refugiados Chatila [Arquivo pessoal]

Nos últimos dias naquele campo de refugiados, depois de quase 20 dias dormindo apenas cinco horas por noite, ficando sem luz muitas vezes, tomando banho gelado, ouvindo e conversando com centenas de mulheres e crianças, entregando todos os brinquedos e cadernos de escrever e colorir, descobri que eu recebi muito mais do que dei.

Somos todos refugiados de alguma  forma, somos filhos da mesma Terra e da mesma humanidade.  Não existem guerras humanitárias. Não existem invasões humanitárias. Existem apenas invasões que escondem interesses econômicos e torpes.

Assim que voltei ao Brasil, descobri que muitos jornalistas que me entrevistavam para saber como era viver em um campo de refugiados tinham a tendência de ver a minha estadia em um lugar perigoso e tão pobre como algo heroico.

Rejeitei imediatamente a ideia de ser considerada uma heroína e não quero jamais ser vista assim. São elas, as mulheres refugiadas, que tiveram suas vidas devastadas, suas famílias e casas destruídas por guerras, limpeza étnica, apartheid, invasões sem o menor sentido, bombardeios e atrocidades, as grandes heroínas anônimas de nosso tempo. Foram elas que me ensinaram que a verdade e a justiça triunfarão de alguma forma na Palestina. É a elas que dedico parte da minha vida e todos os prêmios que recebi.

Assim que voltei ao Brasil, também descobri que a islamofobia, as agressões aos refugiados e o ódio aos diferentes, alimentados por um sujeito que se candidataria ao mais alto cargo do meu país, aumentavam perigosamente.

LEIA: Os extremistas cristãos que alimentam a islamofobia no Brasil

Naquela mesma semana, uma amiga perguntou-me, não por maldade ou xenofobia, mas por desconhecimento da dor dos refugiados e do que eu havia vivido lá, se eu ainda voltaria para aqueles campos de refugiados e se eu não tinha medo “daqueles muçulmanos”.  Medo do menino muçulmano que no meu primeiro dia em Beirute, atravessou o campo de refugiados inteiro comigo, correndo, só para me ajudar a encontrar a pessoa que eu iria entrevistar? Medo das meninas que corriam para me abraçar e me oferecer um pedaço de pão quentinho, assim que eu acordava, medo de homens que me protegeram de todas as formas, me acolheram, e dedicaram seu tempo a me ajudar a encontrar mulheres que quisessem contar suas histórias para o meu livro? Medo de uma refugiada muçulmana que perdeu seu filho e seu marido em um bombardeio israelense, mas jamais deixou de acreditar na vida, dá palestras pela paz em Beirute e tinha o rosto da esperança? Medo das refugiadas que, quando não aguentei e chorei pelas crianças que foram assassinadas por cristãos como eu quando eu era apenas uma criança, no Massacre de Sabra e Chatila, me abraçaram e me falaram de paz entre cristãos e muçulmanos da minha geração? Medo da refugiada muçulmana que me convidou a falar para as crianças sobre a reconstrução da paz e traduziu cada palavra com imensa emoção? Medo do garoto muçulmano que, quando soube que eu era cristã, veio correndo até mim e disse que a mãe dele se chamava Maryam, em homenagem à Maria, mãe de Jesus?

Não, os extremistas de todas as religiões jamais farão com que eu tenha medo dos meus amigos muçulmanos. Terroristas de todas as religiões, onde quer que vocês estejam, se vocês queriam que eu, como cristã, odiasse e sentisse medo de meus irmãos muçulmanos, vocês perderam.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

Categorias
América LatinaArtigoÁsia & AméricasBrasilLíbanoOpiniãoOriente Médio
Show Comments
Palestina: quatro mil anos de história
Show Comments