Estamos numa sexta-feira, dia sempre sagrado às centenas de milhões de muçulmanos espalhados por todo o mundo. Mas esta não é uma sexta-feira qualquer, porque tornada mais sagrada por ser o dia sagrado muçulmano em Eid al-Adha, mais conhecido como o Feriado do Sacrifício, embora lhe caiba mais bem a tradução mais precisa do árabe, Feriado do Alvorecer.
Eid al-Adha, um dos mais importantes feriados do calendários islâmico, senão um de apenas dois, de acordo com algumas interpretações, é traduzido como a “Festa do Sacrifício”, ou, ainda, apenas “Grande Festa”. E, grosso modo, para a esmagadora maioria dos féis muçulmanos, um festival de quatro dias, no qual são trocados presentes e sacrificados carneiros, cuja carne é distribuída entre familiares e necessitados.
No Alcorão Sagrado, Ismail (Ismael), então único filho do caldeu Ibrahim (Abraão), reconhecido como o patriarca do monoteísmo (logo, também, para cristãos e judeus), tinha apenas 13 anos quando é levado a sacrifício. O patriarca Ibrahim, então com 99 anos, recebera revelação (em sonho) com ordem divina para que ofertasse seu único filho em sacrifício. É então que, no momento em que o sacrifício se daria, a intervenção divina substituiu Ismail por dois carneiros e estes é que são sacrificados.
Satanás importunava Ibrahim para que desistisse de cumprir a vontade divina. Resoluto a cumpri-la, o profeta finalmente recebe a ordem divina que o livra do sacrífico:
“Ó Ibrahim, já realizaste a visão! Em verdade, assim recompensamos os benfeitores.” (Alcorão, 37:104-105).
É então que o anjo Gabriel, o mesmo mensageiro que revelou a Maria a vinda do Messias e ao profeta Muhammad o Alcorão Sagrado, traz dos céus um carneiro e este é sacrificado em lugar de Ismail.
Há, ainda, elementos importantes a considerar, ainda que apenas para reflexão, ou atualização do que parece permanente em nossa existência, que é a subordinação de uns a outros, inclusive como escravos: Ismail é filho do patriarca, porém deste com a escrava Agar, que lhe fora presenteada por Sarah, sua esposa, que até então não lhe tinha dado filhos.
Então podemos refletir sobre ao menos dois elementos essenciais à civilidade até nossos dias e, evidentemente, ao monoteísmo que não faz concessões: não se sacrifica seres humanos para agradar algum “deus”, salvo se ele não for o Deus Único e, portanto, apenas um “deus” étnico, bem como (e aqui vivenciamos tema potencialmente polêmico) que todos os seres humanos são criação divina e, assim, igualmente destinatários das mensagens divinas, das profecias, vale dizer, não há escravos ou senhores (afinal, o Alcorão Sagrado é preciso quanto ao sacrificado ser Ismail, o filho da escrava!).
Então temos que o nome do profeta e patriarca Ibrahim está indissoluvelmente ligado ao Deus Único em sua plenitude ao igualar todos os seres humanos, inclusive quanto à própria dignidade humana, ao mesmo tempo em que renega práticas inaceitáveis, como a do sacrifício humano para agradar algum “deus”. Somente nesta passagem colhemos que não é possível haver um “deus” particular para cada grupo/povo e, em vista disso, haver “ordens” deste ao “seu” grupo/povo para escravizar outro grupo/povo e, ainda, dar destes, uma vez que submetidos, em sacrifício ao “deus” étnico.
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É mais do que claro isso e, portanto, compreensível aos leigos dentre os leigos. Mesmo os que, na atualidade, vêm nesta premissa uma perturbação às suas hegemonias e domínios imperiais, que impõem escombros, cadáveres, sofrimentos, enfim, sacrifícios humanos e escravidão em quantidades industriais aos “outros” povos, não a refutam publicamente. Aliás, ao contrário, até a afirmam, até se apresentam como seus precursores, até mesmo vangloriando-se de serem os “únicos”, desde sempre, neste mister. Claro, nada melhor do que dar-se por ordenado por “deus”, já que não há crime ordenado por “deus”.
Ocorre que se atentarmos para a realidade, veremos que não é bem isso o que se dá. Mais ainda: o sagrado nome do patriarca e profeta Ibrahim é usado nos termos mais pecaminosos. Para não irmos longe, citemos apenas dois eventos históricos recentes, intimamente interligados: a limpeza étnica da Palestina e a chamada normalização de alguns regimes da região do Oriente Médio com o israelense.
Israel, enquanto criatura estatal do movimento nacionalista e colonialista sionista, concebido entre europeus de fé judaica – logo, na Europa e por necessidades estritamente europeias –, autoproclamou-se na Palestina à base da limpeza étnica, do roubo de terras, da morte em larga escala e da imposição de um regime obsceno de apartheid sobre a população palestina que permaneceu nesta terra. E fez isso tudo em nome de algo a quem denominam como o “seu” deus. Afinal, não é incomum ouvirmos ou lermos acerca do “deus de Israel”! Nada mais étnico, nada menos monoteísta.
O mais grave, entretanto, está na “normalização”, e não nela em si, visto que, digamos, é plausível conceber um processo político que leve à paz na região, estando incluído Israel. Ocorre que esta se dá com o agravamento dos crimes de guerra e de lesa humanidade israelenses contra o povo palestino. E por ironia, talvez por escárnio, se designa a normalização do apartheid, da limpeza étnica, do genocídio – porque a normalização aceita sem contramedidas este projeto unilateral israelense – com o sagrado nome do patriarca e profeta Ibrahim (“Acordo de Abraão” foi como se denominou a normalização entre Israel e Emirados Árabes Unidos).
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Pior ainda, o “Acordo de Abraão” é celebrado quando toda possibilidade paz é enterrada por Israel e são recrudescidos o apartheid, a limpeza étnica, a integral judaização da sagrada Jerusalém, vale dizer, sua despalestinização, que, por seu turno, é o mesmo que sua desislamização e descristinanização. Quer dizer: retirar do monoteísmo a grande metrópole do monoteísmo.
É uma ofensa grave à memória do patriarca, bem como a negação do que expressamente contido no Alcorão Sagrado, esta “normalização”. Ora, simplesmente se está aceitando o sacrifício o profeta Ismael, neste caso representado pelo povo palestino assassinado todos os dias pela ocupação israelense, de um lado, e dado como possível a escravidão, neste caso representada regime supremacista imposto aos palestinos por Israel, a que se denomina apartneid, considerado crime de lesa humanidade, inclusive com tipificação pelo Direito Internacional (a Convenção Internacional para a Supressão e Punição do Crime de Apartheid, de 1973, e o Estatuto de Roma, de 1998, do qual deriva o Tribunal Penal Internacional (TPI), definem o apartheid como um crime contra a humanidade), de outro.
A grade questão é como isso é possível, como tamanho desatino é assentido e tornado documento internacional, a regular relações entre países. Pior ainda: dar a isto uma conotação Divina!
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É perfeitamente possível afirmar que aqui estamos diante da vitória de Satanás, que não conseguiu convencer o patriarca Ibrahim a sacrificar seu filho, mas conseguiu, até com certa tranquilidade, convencer alguns à tal normalização. Tomara Deus não promovam novo atentado ao monoteísmo, quem sabe desta vez o denominando “Acordo de Ismail” oi coisa parecida.
Por fim, disto tudo devemos tirar a grande lição, caso tenhamos sido capazes de aproveitar Eid al-Adha para reflexões detidas e sinceras: nas revelações do Deus Único não cabem estes sacrifícios humanos e o racismo/apartheid. Mas são cabíveis frente ao “deus étnico”, inventado pelos que precisam fazer seus crimes como ordenados a partir do além. E que cada um faça suas escolhas.
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