Há contas não pagas que a memória coletiva teima em trazer de volta. E cobrar. E assombrar os que se apegam ao heroísmo dos devedores impunes, com atos como o ocorrido neste sábado na da cidade de São Paulo. A estátua do bandeirante Borba Gato, moldada em dez metros e vinte toneladas de concreto, ferro e mármore, ardeu coberta em fumaça preta, imagem que debochou da proteção que o monumento passou a ter desde que as estátuas imerecidas da história começaram a tombar pelo mundo.
No gesto simbólico e arriscado, diante da previsível repressão do Estado, o grupo queimou a roupagem de bandeirante desbravador costurada postumamente para os sertanistas do século 17 pelo historiador Affonso Taunay e que justificou a obra do artista Júlio Guerra.
Ação Direta.
Em dia de protestos contra Bolsonaro no Brasil e no mundo o coletivo @revolucaoperiferica colocou fogo na estatua de Borba Gato na avenida Santo Amaro em São Paulo.
O Bandeirante foi um dos maiores genocidas dos povos indígenas de São Paulo#24JForaBolsonaro #24j pic.twitter.com/n7vRX9JlFp
— Mídia NINJA (@MidiaNINJA) July 24, 2021
Não é preciso investigar muito para entender o que há de errado na celebração. Em 1929, Alcantara Machado, depois de estudar documentos de 1578 a 1700, já mostrava no livro “Vida e Morte do Bandeirante”, o lado B dos desbravadores dos sertões de São Paulo, que inclua um cotidiano de captura, escravização, estupros, roubo e eliminação de indígenas e negros .
Mais de 70 anos após a obra modernista, o tempo não removeu a simbologia desbravadora dos bandeirantes do pedestal paulista. O próprio autor do livro não demonstrava essa intenção demolidora, ele próprio homenageando com o livro um seu antepassado colonizador. Estava, talvez, mais interessado na literatura inovadora para aproximar seu público de então com a intimidade dos acontecimentos de outrora. Os sertanistas que se embrenharam pelo país e alargaram os limites de São Paulo tinham muito de miseria e uso de violência contra os que encontrassem pela frente. Eram caçadores de indígenas e negros fugitivos, e a eles é atribuida a eliminação de etnias nativas.
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Mas cutucar essa memória provoca ranhuras na tradição paulista de povo desbravador, o que infelizmente está ligado às violações da colonização branca e ao desejo de uma elite “quatrocentona” de se distanciar da São Paulo negra, indígena e, com o tempo, cada vez mais “ nordestina”.
A pressão pelo resgate da “história que a história não conta”, enquanto não se completa, tem esses momentos que geralmente acabam levando grupos militantes para a delegacia. É o que já está acontecendo com a prisão do motorista que transportou os pneus para um grupo que aguardava ao pé da estátua. Mas aparte o ato ilegal dos ativistas, atribuido ao movimento Revolução Periférica, e o flagrante presumido mal explicado – 12 horas depois – do motorista, as repetidas manifestações contra o monumento do bandeirante já se expressaram por meio de pixações e projetos de lei para remoção do ícone. Guardas e grades já vigiaram o ícone gigante, nos últimos anos, que vai ficando cada vez mais chamuscado.
O mal estar com a insistência em reverenciar o caçador de gente na cara da gente que ainda continua sendo caçada está sempre a um tris de esbarrar no estopim de revoltas que mudem o rumo das coisas. O assassinato de George Floyd nos Estados Unidos colocou manifestantes nas ruas e estátuas no chão mundo afora. Em São Paulo, grades e guardas foram instalados por um tempo embaixo do Borba Gato que só não caiu ainda pela solidez do concreto e mármore que o sustentam. Os assassinos de Floyd foram presos, mudou uma coisa aqui, outra ali, mas o mundo continua sustentado em racismos sólidos e estruturais, matando outros Floyds nos supermercados brasileiros, nos protestos na Colômbia, na resistência palestina, enquanto as cobranças da memória coletiva se acumulam.
Alguém já sugeriu que a estátua seja mantida com uma grande inscrição de “genocida”, e aí tudo bem. Fica o venerado pelo não dito. Há quem defenda que ela permaneça lá porque afinal, testemunha o que São Paulo já pensou sobre si mesma. Não é o caso de passar uma borracha. E há também quem não queira deixar de ver no bandeirante gigante seu ideal heróico de passado. Afinal, São Paulo também não mudou. Mas a estátua cada vez mais chamuscada é sinal de estopins sempre perto. Como se viu em um vídeo de Borba Gato: a favela vai descer e não será carnaval.
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