O escândalo foi denunciado por 80 jornalistas de vários países. Entre as vítimas, pelo menos 180 comunicadores de vários continentes. A lista, no entanto, ultrapassa os 50 mil telefones grampeados. O escândalo da Pegasus atinge dimensões incalculáveis. Principal gerente: a empresa israelense NSO Group.
As notícias do terceiro domingo de julho abalou a arena internacional e se multiplicou como rastilho de pólvora. A Forbidden Stories , iniciativa de investigação jornalística coletiva sediada na França, denunciou a interferência de 50 mil telefones. Entre as vítimas, pelo menos, por enquanto, 600 figuras políticas (incluindo o presidente francês Emmanuel Macron), 85 ativistas de direitos humanos e 180 jornalistas.
A investigação envolveu 80 jornalistas de 17 veículos de notícias, incluindo The Guardian, Le Monde, Süddeutsche Zeitung, The Washington Post, Proceso e Aristegui Noticias de México, Radio France, Le Soir.
Poderosos
A empresa israelense de segurança de computadores NSO Group fundada em 2010, com relações muito próximas com mídias governamentais, aparece na base desse escândalo. Em 2015, foi comprada pela empresa estadunidense Francisco Partners por 145 milhões de dólares. Dois dos sócios fundadores a recuperaram em 2019 pagando 1 bilhão de dólares. Em apenas quatro anos, seu valor aumentou sete vezes, indicando a importância de seus negócios.
Hoje, 70% do capital majoritário da firma com sede em Herzliya, Israel, permanece de propriedade da Francisco Partners, com sede em São Francisco, Califórnia – com centros em Nova York e Londres. Essa megaempresa tem 24 bilhões de dólares de capital e se define como “uma das maiores e mais ativas empresas de capital privado do mundo, focada em tecnologia”.
A NSO Group, em seu próprio site, apresenta-se como “inteligência cibernética para segurança e estabilidade globais”. Diante do escândalo pelo qual é responsabilizada, ela responde que “o relatório de Forbidden Stories está cheio de suposições errôneas e teorias não corroboradas que levantam sérias dúvidas sobre a confiabilidade e os interesses das fontes”.
O spyware (programa espião) promovido e vendido pela NSO Group pode ser instalado remotamente em qualquer smartphone sem exigir qualquer ação por parte do proprietário. Uma vez instalado, permite que o intruso assuma o controle total do telefone. E ser capaz de inspecionar mensagens, vídeos, fotos, áudios e contatos da vítima. A NSO argumenta que “coleta apenas dados dos dispositivos móveis de pessoas suspeitas de estarem envolvidas em atividades criminosas e terroristas graves” e que sua tecnologia é oferecida apenas aos Estados.
Desmascarados
No entanto, uma filtração de dados sem precedentes de 50.000 números de telefone selecionados de 2016 a 2021, acessada pela Forbidden Stories e pela Anistia Internacional, mostra um duplo discurso entre a realidade do uso cotidiano do software e as declamações públicas da empresa.
Foram identificados números de jornalistas de 21 países monitorados durante esse período. O consórcio investigativo, com apoio técnico do Laboratório de Segurança da Anistia Internacional, pôde confirmar parte das interferências através da realização de varreduras telefônicas, através das quais os jornalistas foi possível contatar os jornalistas com segurança. A maioria dos profissionais “monitorados” lida com questões muito sensíveis de interesse público e, em muitos casos, tem confrontado criticamente as autoridades de seus países, denunciando-as por atos de corrupção, violações de direitos humanos etc.
A Forbidden Stories publicou uma primeira lista não exaustiva de 44 jornalistas controlados por Pegasus, incluindo 11 mexicanos, bem como comunicadores da Espanha, França, Grã-Bretanha, Hungria, Índia, Marrocos, Togo, Azerbaijão e Ruanda. E acaba de anunciar que continuará apresentando, nos próximos dias, outras evidências resultantes de sua investigação.
Na América Latina, o México é o país mais afetado. Do total de 50 mil telefones controlados, 15 mil números são mexicanos. Pertencem, entre outros, a defensores dos direitos humanos, vários parentes dos 43 estudantes do Normal Rural de Ayotzinapa, a pesquisadores da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a cerca de 25 jornalistas.
Um caso emblemático desta lista preliminar é o do jornalista mexicano Cecilio Pineda. Seu número foi solicitado por um “cliente” mexicano da NSO, apenas algumas semanas antes de seu assassinato, em 2 de março de 2017, no Estado de Guerrero. O celular do comunicador assassinado não pôde ser verificado por Forbidden Stories, pois nunca apareceu.
Pineda colaborava com os jornais La Jornada e Universal desde 2012 e em seu Facebook publicava vídeos e informações comprometedoras ao poder; era seguido por 50 mil inscritos. Muitos deles denunciaram a relação de personalidades locais e estaduais com o tráfico de drogas e atividades criminosas. A NSO Group negou que os dados extraídos do telefone de Pineda contribuíram para sua morte, embora seu telefone tivesse sido alvo de ataques.
De acordo com Danna Ingleton, diretora adjunta de Anistia Tech, a perícia descobriu evidências irrefutáveis de que o spyware da NSO conseguiu infectar telefones do iPhone 11 e iPhone 12 através de ataques sem clique via iMessage, “quebrando os recursos de segurança e privacidade da Apple”. É possível que haja milhares de telefones em perigo, alertou a especialista recentemente.
E ressaltava que a NSO Group não pode mais se esconder atrás do argumento de que seu spyware é usado apenas para combater o crime. “Há evidências esmagadoras de que o spyware da NSO é sistematicamente usado para reprimir e cometer outras violações de direitos humanos. NOS Group deve parar imediatamente de vender seu material para governos que têm histórico de abusos contra os direitos humanos”, enfatiza essa especialista da Anistia Internacional.
Esses achados, acrescenta, mostram que a indústria de vigilância está fora de controle. “Os Estados devem suspender imediatamente a exportação, a venda e o uso da tecnologia de vigilância em todo o mundo até que se estabeleça um marco regulatório que respeite os direitos humanos”.
Forte denúncia
De acordo com a Federação Internacional de Jornalistas (FIP), com sede em Bruxelas, a lista de 180 jornalistas espionados inclui repórteres da mídia internacional, bem como jornalistas autônomos que foram alvo de regimes que querem saber quais são suas fontes de informação, buscam minar seu trabalho e, em alguns casos, até tentam parar e impedir a publicação de suas reportagens.
A FIP, que reúne mais de 600 mil profissionais de mídia em 187 sindicatos, federações e associações de mais de 140 países, enfatiza que o atual escândalo que acaba de explodir mostra a profunda vulnerabilidade da liberdade de imprensa. E serve de exemplo para mostrar como o direito do público de ser informado está sendo seriamente violado.
Falando a esse correspondente, Anthony Bellanger, secretário-geral da FIP, afirmou que o “incrível trabalho de mais de 80 jornalistas em todo o mundo foi capaz de lançar luz sobre tentativas irregulares de interferir nas comunicações privadas de profissionais de mídia”.
O dever de proteger as fontes é a base do jornalismo do qual as sociedades livres dependem. Que esse vazamento seja possível destaca os perigos inerentes a um programa tão poderoso quanto perigoso, disse ele. “Sem uma regulamentação forte, é inevitável que déspotas e censores tenham acesso às nossas informações mais íntimas”, diz o chefe da FIP.
Bellanger informou que sua federação está trabalhando globalmente nesta questão através do Grupo de Especialistas em Vigilância, coordenado por Tim Dawson, ex-presidente da União Nacional de Jornalistas (NUJ) do Reino Unido e enviado especial, em nome da FIP, para o julgamento que aconteceu em Londres contra o jornalista Julian Assange, em 2020 e 2021.
“O software Pegasus está sendo usado como um algoritmo para minar a democracia”, enfatiza Tim Dawson. Para ele, os contatos confidenciais são a base fundamental do melhor jornalismo, aquele que denuncia o desperdício, a incompetência e a corrupção. A privacidade das comunicações das(os) jornalistas, seja por e-mail, mensagens móveis ou telefone, “deve ser sagrada”.
Como primeira reação ao escândalo que acaba de eclodir, a FIP pede às(aos) jornalistas que redobrem seus esforços para proteger seus próprios dados. Uma das medidas que propõe é o uso de vários telefones, incluindo os burner, que são menos suscetíveis a serem hackeados por Pegasus. Os governos devem garantir na legislação nacional a inviolabilidade das comunicações das/os jornalistas, tanto como princípio geral quanto no âmbito de leis e regulamentos específicos e aqueles relativos à vigilância nacional. A comunidade internacional, por sua vez, deve construir um regime regulatório que permita a inspeção e a regulação de cada empresa que fornece produtos (como é o caso da NSO) que tenham a capacidade de minar essas liberdades essenciais à democracia.
Isso está apenas começando
Ao mesmo tempo em que a Forbidden Stories confirma sua decisão de continuar a descobrir informações sobre o spyware usado ilegalmente, as vozes estão se multiplicando no grande conglomerado de afetados sobre futuros casos legais contra a NSO, cuja reputação começou a cair rapidamente nos mercados de ações e outros.
A ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF), em nome de vários dos afetados, iniciou nesta terça-feira, 20, na França, um processo contra a empresa israelense. Em declarações à imprensa, Christophe Deloire, secretário-geral da RSF, denunciou como inaceitável a espionagem com o software Pegasus e antecipou a vontade de sua organização de fazer tudo ao seu alcance para que a empresa seja condenada.
Entre os diretamente afetados, a ONG destaca o caso de dois jornalistas marroquinos independentes: Taoufik Bouachrine e Omar Radi. Ambos foram presos, com processos judiciais arbitrários –denunciados inclusive por organismos internacionais– e recentemente condenados a 15 e 6 anos de prisão, respectivamente.
O jornalista espanhol Ignacio Cembrero, especialista em Oriente Médio e Magreb, colaborador há 30 anos do jornal El País e outra vítima de Pegasus, também antecipou o início de um processo legal. Assim como a jornalista azerí Khadija Ismaïlova.
Por outro lado, personalidades individuais do mundo dos direitos humanos, como o advogado francês Joseph Breham, anunciaram sua intenção de levar à justiça o controle ilegal a que foram submetidos.
O escândalo Pegasus já é projetado como capa de notícias e capa de registros durante os próximos meses. A máquina de negócios tecnológicos israelenses, que sustenta a conhecida última geração dos serviços de inteligência nacionais e internacionais em todo o mundo, está agora no banco dos réus. E enquanto tenta se defender acusando os jornalistas investigativos de Forbidden Stories, terá que apresentar provas consistentes para escapar de acusações não menos consistentes. Esse tipo de espionagem é certamente um crime hediondo. Seus corolários diretos: vítimas fatais e graves violações dos direitos humanos essenciais. A batalha, mais uma vez, está acontecendo hoje entre jornalistas e serviços de espionagem, ou seja, entre a verdade e a força.
Tradução: Rose Lima
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