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Tunísia mergulha em uma perigosa armadilha

Forças de segurança fecham o parlamento tunisiano; apoiadores e oponentes do presidente Kais Saied protestam contra suas recentes medidas descritas como golpe, em Túnis, Tunísia, 26 de julho de 2021 [Nacer Talel/Agência Anadolu]
Forças de segurança fecham o parlamento tunisiano; apoiadores e oponentes do presidente Kais Saied protestam contra suas recentes medidas descritas como golpe, em Túnis, Tunísia, 26 de julho de 2021 [Nacer Talel/Agência Anadolu]

A sociedade tunisiana ainda está em choque após a decisão do presidente Kais Saied de destituir o primeiro-ministro e suspender os trabalhos do parlamento nacional. Poucos esperavam que o representante eleito utilizasse supostos mecanismos democráticos para reverter a própria trajetória democrática que o levou ao cargo. Sobretudo, em um país frequentemente aclamado como caso de sucesso da Primavera Árabe, há cerca de dez anos.

O sistema político pós-revolução na Tunísia se baseia na partilha de poder entre o chefe de estado, o presidente do parlamento e o primeiro-ministro. O intuito era impedir decisões unilaterais das partes influentes e evitar um eventual retorno ao sistema presidencialista absoluto liderado por Habib Bourguiba e Zine el-Abidine Ben Ali.

No entanto, o que aconteceu há dias foi a abolição da autoridade do governo e do parlamento pelo presidente, que outorgou a si próprio exclusividade sobre o poder executivo.

Nos últimos dias, o Artigo n°80 da Constituição da Tunísia efetivamente gerou perplexidade e uma série de debates no país, por tratar-se do dispositivo adotado por Saied para justificar sua postura. O trecho estipula que o presidente pode assumir tais medidas em caso de ameaça ao país; porém, sem especificar a natureza dos perigos — portanto, sujeito a interpretações.

O texto confere ao presidente o direito de tomar medidas excepcionais após consultar o premiê e o chefe do parlamento — o que não aconteceu, uma vez que Saied não comunicou a nenhum dos outros dirigentes suas iminentes intenções. Da mesma forma, este mesmo artigo obriga o presidente a informar o chefe do Tribunal Constitucional de suas decisões. Saied, no entanto, recusou-se reiteradamente a selar a ordem para compor a instituição prevista.

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Sob as informações presentes, as medidas tomadas pelo presidente violam o texto explícito da Constituição da Tunísia e representam, desta forma, um golpe evidente contra o estado.

A Constituição determina, por exemplo, que o parlamento — isto é, a Assembleia dos Representantes do Povo — deve permanecer em sessão permanente durante o período excepcional, prescrição violada por Saied ao suspender os trabalhos legislativos sob força militar e impedir a entrada de congressistas nas instalações.

Rua Habib Burgiba permanece vazia após o presidente Kais Saied outorgar a si próprio autoridade executiva, em Túnis, Tunísia, 27 de julho de 2021. [Arif Hüdaverdi Yaman/Agência Anadolu]

Rua Habib Burgiba permanece vazia após o presidente Kais Saied outorgar a si próprio autoridade executiva, em Túnis, Tunísia, 27 de julho de 2021. [Arif Hüdaverdi Yaman/Agência Anadolu]

O presidente também se autoproclamou chefe do Ministério Público e efetivamente assumiu controle absoluto sobre os três poderes no país: executivo, legislativo e judiciário.

Saied abusou de poderes constitucionais e envolveu o exército e a polícia em sua aventura política, segundo diversos analistas que descreveram os recentes episódios como golpe flagrante contra o último bastião da democracia dentre os países árabes, sob risco de apagar o próprio legado da revolução popular.

Não obstante, não podemos isolar os eventos recentes na Tunísia de seu âmbito regional.

Vários agentes estrangeiros conduziram uma vasta campanha nas redes sociais para convencer tunisianos e observadores de que o golpe de estado tem base popular. A mesma fraude incorreu sobre o parlamento, para desorganizá-lo, e promoveu ataques massivos a partidos revolucionários que repudiaram o golpe.

Em contrapartida, partidos democráticos e proeminentes figuras nacionais, incluindo peritos e professores de direito constitucional, expressaram sua oposição aos avanços perigosos de Saied, ao denunciar um golpe contra a constituição, a revolução e a trajetória democrática do país norte-africano. A única exceção foi o chamado Movimento Popular, que conclamou seu apoio às ações do presidente desde o princípio.

Contudo, a deterioração da conjuntura tunisiana no âmbito econômico, social, político e sanitário, agravada pela pandemia de coronavírus, é inegavelmente impressionante. De fato, todas as partes relevantes contribuíram para a crise, incluindo a presidência da república, ao dificultar a formação de um governo estável e a nomeação de ministros.

Mais urgente, questiona-se se o golpe de estado pode agravar ainda mais a situação? Não seria melhor organizar um diálogo nacional para responsabilizar as partes e asseverar a prestação de contas? Se os governantes eleitos, incluindo congressistas e o presidente da república, não conseguem de fato cumprir seus deveres e objetivos definidos para os seus mandatos, não deveriam então devolver o poder ao povo e antecipar eleições?

Muitas questões assombram a população, sob o temor de que tais medidas prenunciem uma franca ditadura e repliquem a tragédia em que mergulhou o Egito. Longe de especulações, os próximos dias darão respostas aos desdobramentos da política tunisiana.

Além do esforço veemente para envolver o exército — supostamente imparcial e independente no jogo político —, o mais perigoso da tentativa de golpe é a possibilidade de que o capítulo do excepcionalismo tunisiano seja encerrado e que a lógica da democracia, com eleições e reformas por meios pacíficos, seja excluída do dicionário árabe e submeta assim toda a região a caminhos imponderáveis, com enorme prejuízo à população.

Não há solução na Tunísia senão diálogo — restaurar as instituições constitucionais e traçar um roteiro ao qual todas as partes se comprometam para superar a crise e consolidar o trajeto democrático.

Ninguém será vitorioso nessa contenda, pois o único êxito possível seria contra a crise que tanto assola o país — em nome das próximas gerações e para que a Tunísia permaneça como oásis de democracia em um ainda aterrador deserto árabe.

Partidos tunisianos denunciam golpe do presidente Kaies Saied; infográfico desenvolvido em Ancara, Turquia, 28 de julho de 2021 [Omar Zaghloul e Irşad Tograk/Agência Anadolu]

Partidos tunisianos denunciam golpe do presidente Kaies Saied; infográfico desenvolvido em Ancara, Turquia, 28 de julho de 2021 [Omar Zaghloul e Irşad Tograk/Agência Anadolu]

Este artigo foi publicado originalmente em árabe pela rede Arabi21, em 29 de julho de 2021 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.

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