Vídeos recentes de refugiados afegãos tentando escapar do Talibã, em fuga pela fronteira iraniana à Turquia, recordam-me palavras de Zygmunt Bauman, renomado sociólogo que faleceu aos 91 anos em 2017. A Universidade de Leeds, onde Bauman lecionou por vinte anos (1971-1991), nomeou um instituto em sua homenagem. Bauman era um autor prolífico sobre diversos assuntos, incluindo Holocausto, modernidade e refugiados.
Um novo influxo de refugiados afegãos ameaça agora o frágil tecido social, econômico e cultural da Turquia. Na última semana, uma investigação foi lançada no país após declarações xenófobas do prefeito de Bolu, Tanju Ozcan, que prometeu decuplicar as contas de águas a residentes “estrangeiros” — em referência direta aos refugiados da Síria.
Por que isso remete a Bauman? Certa vez, explicou o professor, de maneira razoavelmente contra-intuitiva, que a modernidade de fato precisa dos refugiados. Em entrevista à rede Al Jazeera, Bauman argumentou que, caso não houvesse migração, esta teria de ser inventada por ser tão útil à elite política.
Bauman referia-se ao fato de que os refugiados são um problema aparentemente controlável quando comparado a outras questões globais, como as mudanças climáticas. Segundo sua lógica, os chamados imigrantes — ou refugiados — são efetivamente úteis ao jogo político para angariar votos, manipular a opinião pública, alimentar o medo e cultivar apoio ideológico, a depender da postura e perspectiva da base eleitoral.
O sociólogo descreveu o medo dos refugiados existente na Europa — como o temor demonstrado pelo prefeito turco supracitado — como “medo líquido”. Afirmou: “Trata-se de um medo que flui pelo nosso ambiente, que não permanece em um único lugar, mas é difuso. É o problema do medo líquido, diferente de ameaças concretas, conhecidas e mesmo familiares, é que não sabemos de onde virá”.
Dessa forma, tamanho medo e o novo influxo de refugiados afegãos levarão a União Europeia a reconsiderar seu acordo assinado com a Turquia em 2016? O pacto serviu de resposta a dezenas de milhares de imigrantes que atravessaram o Mar Egeu e chegaram às ilhas gregas — ou se afogaram no caminho —, em meados de 2015. Segundo os termos acordados, refugiados que concluíssem a travessia à Grécia seriam prontamente enviados à Turquia, onde cidadãos sírios, por exemplo, recebem status de proteção temporária. Um aspecto fundamental do tratado era uma mudança no arranjo, segundo o qual para cada sírio designado “inadmissível” na Europa e forçado a retornar à Turquia, um refugiado em solo turco poderia então solicitar asilo no bloco europeu. O processo de retorno, no entanto, foi congelado em março de 2020, quando a Turquia citou dificuldades devido à emergência do coronavírus.
Segundo o Ministro das Migrações da Grécia Notis Mitarakis, a Turquia recusa-se a cooperar há dezessete meses, mesmo embora o processo de repatriação compreenda testagem e controle do covid-19. Todavia, o regime turco alega que a dinâmica mudou desde a assinatura do acordo em 2016. “As necessidades são distintas”, declarou um porta-voz do presidente Recep Tayyip Erdogan, no último mês. “As necessidades de ensino e saúde, por exemplo, tornaram-se mais eminentes”. Segundo Ancara, a situação presente não demanda somente recursos adicionais. “Trata-se de interpelar a questão de forma humana, de forma a encerrar o conflito, abordar a raiz do problema, para que a comunidade internacional — União Europeia, Estados Unidos, todos nós — seja mais resiliente, mais proativa e mais efetiva para solucionar a questão”.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), há hoje quatro milhões de requerentes de asilo, em maioria sírios, na Turquia. Estima-se que 200 mil afegãos compreendam o segundo maior grupo. Porém, segundo a agência da ONU, quase 300 mil pessoas sofreram deslocamento interno em território afegão desde janeiro, ao passo que as tropas estrangeiras da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) deixaram o país. O número cresce em escala diária. O Presidente do Afeganistão Ashraf Ghani culpa a retirada apressada das forças ocidentais pela escalada do Talibã em partes do país. Abdul Waris, especialista em geopolítica afegã, relatou ao MEMO na última semana que a ressurgência do Talibã avançou rápida e violentamente.
Há então receios na Turquia de que o último influxo de refugiados possa impor pressão ao acordo com a Europa. À medida que grupos de oposição tentam ganhar terreno para a próxima campanha eleitoral, ao adotar uma retórica xenófoba, o próprio presidente Erdogan pode ter de exigir mudanças no tratado. Kemal Kilicdaroglu, líder do Partido Popular Republicano, tuitou em 18 de julho um “chamado ao mundo” no qual insistiu que ninguém deveria declarar seu país uma “prisão aberta aos refugiados”.
A chancelaria em Ancara advertiu: “A Turquia não receberá uma nova onda migratória. A Turquia não servirá de guarda de fronteira ou campo de refugiados à União Europeia”. Pouco antes, inferiu o premiê austríaco Sebastian Kurz: “Estados como a Turquia … são definitivamente um lugar melhor [aos refugiados] do que Áustria, Alemanha ou Suécia”.
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Dado o apoio europeu ao governo grego em sua disputa sobre o Mediterrâneo Oriental com a Turquia, as relações entre Bruxelas e Ancara são consideravelmente mais tensas do que em 2016. Embora Erdogan prometa não deportar seus refugiados sírios, seu mandato permanece sob pressão e dura ameaça eleitoral. Os sentimentos xenófobos na Turquia assumiram uma ascensão histórica nos últimos anos, de modo que o longevo presidente possa enfrentar uma difícil campanha para sua reeleição em 2023.
Como estão as coisas, a observação de Bauman sobre os refugiados deve tornar-se influente no futuro próximo do relacionamento turco-europeu. A crise não é imaginária, tampouco inventada — trata-se de algo absolutamente real. O futuro de muitos políticos na União Europeia e mesmo na Turquia está na corda bamba. Sua sobrevivência política depende de como lidar com este novo influxo de refugiados.
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