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Soldados israelenses em Gaza ostentam má conduta

“Brimos”, obra fundamental e novíssimo clássico árabe-brasileiro

Autor do livro(s) :Diogo Bercito
Data de publicação :22 de julho de 2021
Editora : Fósforo Editora
Hardcover :272 páginas + caderno de imagens páginas
ISBN-13 : 10-6589733104

Brimos – Imigração sírio-libanesa no Brasil e seu caminho até a política, escrito por Diogo Bercito (editora Fósforo, 2021, São Paulo capital), nos apresenta uma obra de 272 páginas absolutamente magistral. O livro, que inicia com capa primorosa e conta com um conjunto de imagens e fotos fantásticas, apresenta uma leitura agradável e envolvente, digna de um artesão das palavras. O autor, cuidadoso e delicado até nos momentos mais críticos – como nas passagens em que constam casos reais e concretos de corrupção e dano moral de operadores políticos – consegue tecer um panorama complexo que culmina nas trajetórias políticas de alguns patrícios. As carreiras de representação e gestão públicas, as mais conhecidas da sociedade brasileira na segunda metade do século XX e início do XXI, são o ápice do livro, através de trajetórias familiares e os hábitos, usos, costumes, memórias e afetos deste Mundo Árabe transatlântico, com mais de cem anos no Brasil.

Bercito foge do lugar comum e traz a familiaridade de quem pesquisa a imigração árabe, especificamente a libanesa, apropriadamente denominada sírio-libanesa. Se na contracapa o livro coloca sobrenomes com trajetórias políticas marcantes “Brimos perfila famílias emblemáticas da política nacional, como os Boulos, os Feghali, os Haddad, os Kassab, os Maluf e os Temer”, a obra foge de estereótipos e coloca a complexidade de uma imigração que saiu do território do Monte Líbano em crise profunda (parece uma sina de nossa terra ancestral), e passa desde a chegada ao Porto de Santos até a penetração nas mais variadas áreas de saberes específicos do Brasil, na virada do século XIX para o XX. Como estudioso do tema, o repórter, brimo por afeto, com sólida formação acadêmica no tema e conhecimento do terreno no Oriente Médio (o oeste da Ásia para quem está vinculado à resistência contra o imperialismo anglo-sionista) afasta todas as formas da caricatura. O texto vai além e apresenta a crítica da crítica, quando humoristas e cronistas de comportamento – inclusive com origem patrícia – repetem o mesmo escárnio  que joga nossa origem no limbo pela má condução de alguns. Esforços como essa obra conseguem demonstrar as raízes mais profundas de sagas familiares, ajudando a criar uma brasilidade com tempero de zattar (Za’atar).

Nesta resenha, como um trailer de cinema, proponho que passemos por cenas relevantes que correm em paralelo com a trama das famílias, com presença política. Conforme aprendemos em economia política, o resultado do todo é maior do que a soma das partes. Assim,  vale compreender o complexo universo com o qual Bercito está familiarizado. Vejamos alguns trechos de capítulos, intercalados por comentários deste que escreve.

Fenícia Tropical (capítulo 1)

“Pergunte a um libanês no Brasil quem são os seus antepassados, seus ancestrais, seu povo. Mas prepare-se para ouvir uma longa, longa história – você provavelmente voltará a milhares de anos no passado, até caminhar entre civilizações das quais talvez nunca tenha ouvido falar, cruzando o mar em trirremes, navios de madeira movidos a remo” (pág. 27).

Leio esse trecho e me vejo, ainda criança, na cozinha do apartamento de meu avô paterno, ouvindo o  dentista libanês de origem maronita (e nacionalista pan-arabista, nunca foi falangista), que narrava a epopeia de Fenícia e Cartago e enchia os olhos com a campanha de Aníbal Barca na Península Itálica.

“Ao reivindicar uma origem fenícia, libaneses – em particular na diáspora – tentam se desvincular da cultura árabe e islâmica hegemônica no Oriente Médio. Com isso, buscam um pedigree, uma identidade própria, distinguindo-se dos vizinhos dos quais não sentem muito orgulho. Apesar dessa escolha, a contribuição do Islã para a história do Líbano é inegável” (pág. 27).

De imediato, me vejo em um debate clássico, que opera com o serviço de inteligência e a diplomacia da França, alimentando a disputa entre libaneses cristãos do oriente, drusos, sunitas, alauítas e a comunidade xiita. Uma interpretação que parece mais ajustada é a Grande Cananeia, em que a Cananeia Fenícia era parte desta região, incluindo um importante brimo que atuou como guerrilheiro, Eeshoo (em aramaico) ou Yeshuo em siríaco. A pertença ao Mundo Árabe e a boa convivência com o Mundo Islâmico das comunidades que compõem o mosaico do Bilad al-Sham é uma das chaves para a libertação de nossas terras ancestrais.

“O islã, que surgiu no século VII a partir das visões do profeta Maomé, chegou em 632 à região da Síria e do Líbano, com os exércitos da península  Arábica. A primeira dinastia muçulmana, o califado Omíada, tinha capital em Damasco até  sua extinção em 750. O califado Abássida, que o substituiu, instalou-se em Bagdá, entre os rios Tigre e Eufrates. É daquela época o califa Haroun al-Rashid, que aparece nas Mil e Uma Noites – os contos narrados por Sherazade, uma tradição de que saíram personagens como Ali Baba e Aladdin.” (pág. 28)

É praticamente indissociável a cultura árabe, as culturas da arabidade e a presença do islã no Levante. O parágrafo acima narra, com maestria, essa complementaridade.

Intelectuais e andaluzes (capítulo 5)

“Os libaneses que circulavam pelo Largo São Francisco naqueles anos tinham à sua disposição, caso quisessem se informar, dezenas de jornais publicados em árabe. Após chegar ao Brasil, os patrícios fundaram sem demora uma vistosa imprensa em sua língua de origem, voltada à colônia – divulgando notícias sobre Oriente Médio, casamentos da comunidade, óbitos e ofertas de emprego”. (pág.77)

Com a licença poética de retomar Al-Andaluz, a vida cultural dos falantes da língua árabe no Brasil era intensa. O livro nos traz esse universo particular da capital São Paulo (território da diáspora onde a obra é centrada), com destaque para outras capitais, do final do século XIX e primeira metade do XX.

“Havia jornal para todo gosto. Circularam dezenas de jornais, revistas e periódicos em árabe no país entre 1880 e 1940. A cifra é ainda mais impactante quando comparada ao Oriente Médio. Ironicamente, ao mesmo tempo em que a imprensa árabe florescia no Brasil, ela era quase inexistente em países como Marrocos, Argélia, Líbia e Iêmen.” (pág. 77)

Cabe observar que a veiculação e produção de jornais, revistas e livros sempre foi fator de independência e soberania. Diante do imperialismo europeu seria impossível a circulação de obras autóctones. Imagino as lutas no Fez, nas montanhas Atlas, na Cabília, na “Berberia” (uma denominação absurda dada pelos invasores europeus), dos iemenitas sob “protetorado” britânico e, vejo ainda mais factível, uma luta entranhada pela libertação. Nossos antepassados na diáspora formaram um caldo de cultura que deu base para instituições muito importantes.

“Era por meio daquelas notícias que os árabes conversavam a respeito da política do  Oriente Médio e da situação da comunidade. Participar da indústria de jornais era também um marcador de sofisticação cultural – era um ramo de quem tinha ambições intelectuais. Aquela imprensa ainda servia para estabelecer uma identidade comum. Àquela época, poucos anos depois do fim do Império  Otomano, ainda não estava tão claro o que afinal era um “árabe” e de que território ele deveria fazer parte. Nacionalistas debatiam o que um marroquino e um sírio tinham em comum – religião? Idioma? Cultura? Os jornais publicados na diáspora ajudavam a criar uma “esfera pública transregional” – em outras palavras, o debate a respeito do que significava ser árabe acontecia  além das fronteiras, onde quer que houvesse uma comunidade e um jornal em árabe”. (pág. 78)

No trecho acima, Bercito traz mais uma relevante contribuição. Como nossa diáspora embarca na aventura histórica da libertação, nos cabe pensar saídas para o século XXI, ao menos para os países de onde viemos (mais de 95% dos e das árabes no Brasil são do Líbano, Síria e Palestina). A “esfera pública transregional” pode e deve ser revivida, através da “reserva estratégica” da luta árabe, a própria diáspora, como é o conceito do nacionalismo palestino pan-arabista.

“A literatura produzida pelos imigrantes árabes é chamada pelos especialistas de literatura do  ‘mahjar’ (a diáspora, em árabe). Era especialmente importante nos Estados Unidos, onde autores como Gibran Khalil Gibran e Elia Abu Madi fizeram fama e ajudaram a fomentar a ‘Nahda’, o Renascimento árabe – o  movimento cultural que despertou no final do século XIX almejando a modernização e o progresso dos povos de língua árabe”. (pág.79)

“Foi justamente na diáspora que aquele renascimento deu frutos. Escritores do ‘mahjar’, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil e na Argentina, ajudaram a simplificar a língua e assentaram as bases da criação do árabe padrão falado hoje no Oriente Médio”. (pág. 79)

A Nahda, nosso Renascimento diante do avanço dos cruzados ocidentais, da decadência do Império Otomano e da conspiração do acordo infame Sykes Picot Sazanov, encontrou eco na arabidade transatlântica. O idioma, língua viva e dinâmica, se renova e massifica nas obras do lado de cá do Atlântico.

O Hospital dos presidentes (capítulo 7)

“O debate a respeito da identidade – se eles eram sírios, ou libaneses ou ambos – pode parecer pequeno hoje, mas àquela época essa pergunta era  urgente. A mesma questão apareceu em outras instituições. O Esporte Clube Sírio, de 1917, a princípio reunia tanto sírios como libaneses. Descontentes, alguns libaneses foram à justiça para tentar incorporar a palavra ‘libanês’. Sem sucesso, criaram em 1934 o Clube Atlético Monte Líbano”. (pág. 105)

Novamente a memória desse leitor que vos escreve é evocada, e aparece a figura de meu avô paterno, sócio do Clube Sírio e Libanês (quando ainda se localizada no bairro de Botafogo, zona sul do Rio). Outra lembrança que me veio foi do Clube Monte Líbano (na Lagoa, também zona sul carioca), bem como do Syrio e Libanez Athletico Club, fundado na Tijuca (tradicional bairro da zona norte), de 1921, que não chegou a ter vida longeva. Acredito que esse “racha” dentro de uma mesma comunidade tenha sido espelhado, infelizmente, em outras cidades e estados brasileiros.

Ainda falando de memória e afeto esportivo, ambas as agremiações árabes paulistanas formaram o maior clássico do basquete brasileiro nas décadas de ’70 e ’80 do século passado, incluindo o título mundial FIBA ganho pelo Sírio em 1979 (sendo também vice-campeão mundial em 1973 e 1981). Pena que aqueles momentos épicos com o ginásio do Ibirapuera lotado e transmissão de TV em rede nacional não converteram em apoio político para a causa nacional árabe.

Precisamos de obras e pesquisas como este livro, mas voltados para o legado esportivo – e em especial aos esportes de luta e contato – cuja contribuição da comunidade árabe-brasileira é gigantesca.

“Foi na gestão de Violeta que o Hospital Sírio-Libanês formou sua identidade. Tomando lugar da mãe na Sociedade Beneficente, ela deu os rumos da instituição. Mas a história da instituição também dependeu, naqueles primeiros anos de funcionamento, de uma figura de fora da família Jafet: o médico Daher Cutait, que foi o diretor clínico do hospital por décadas”. (pág.105)

A família Jafet, a maior expressão da prosperidade na diáspora, foi fundamental para a base do Hospital Sírio-Libanês e sua vocação de excelência. A presença de brimas e brimos nas carreiras médicas e na área da saúde é enorme, ainda maior do que nas carreiras políticas, e fundamental em momentos de crise sanitária como a que estamos vivendo desde março de 2020 com a pandemia do Coronavírus. Quem dera a saúde pública nos países árabes contasse  com a excelência de patrícios médicos  e médicas na mahjar.

O outro lado do espelho (capítulo 18)

“Se existem poucos estudos a respeito da imigração de libaneses para o Brasil, há menos ainda em relação ao retorno de milhares deles ao Líbano. Segundo o americano Akram Fouad Khater, um dos primeiros a investigar o fenômeno, em 1914 quase 80.000 pessoas já tinham regressado, fundindo-se a uma população de apenas 414.000. Exceto por uma borrifada de comentários passageiros, nunca encontramos aqueles muitos que voltaram. Não aprendemos nada sobre sua experiência de retorno, o que trouxeram de volta com eles, como foram recebidos e seu papel em construir o Líbano moderno.” (pág. 225)

Precisamos contar nossa história dos dois lados do espelho e alinhar a existência como resistência, tanto na diáspora latino-americana como no Levante. Jamais seremos livres ou teremos vida próspera enquanto nossos países – Líbano, Síria e Palestina, assim como o Mundo Árabe e Islâmico – não tiverem liberdade e prosperidade. O caminho da retidão sempre vai apontar para a luta justa. A contribuição de livros como o de Diogo Bercito é fundamental tanto para essa compreensão como para o urgente engajamento de milhões de brimas e brimos.

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