A hashtag #womensrights (direitos das mulheres) viralizou nas redes sociais desde a captura dramática de Cabul, capital do Afeganistão, pelo grupo Talibã, todavia, naquilo que se mostrou uma tomada quase pacífica. Fora os detalhes, a transição de poder foi muito mais suave do que em Washington, em janeiro deste ano, quando cinco pessoas morreram e centenas ficaram feridas entre a saída de Donald Trump e a posse de Joe Biden, sobretudo com o cerco de milícias de extrema-direita a congressistas no Capitólio.
Contudo, talvez a maior manchete de Cabul — além da aterradora vitória militar do Talibã — tenha emergido durante a coletiva de imprensa que se seguiu. Conhecido pela maioria dos jornalistas como uma sombra distante ao telefone, enfim vimos o rosto do porta-voz do movimento Zabihullah Mujahid. Surpreendentemente, o oficial afegão falou então de direitos das mulheres, ao prometer respeitá-los desde que de acordo com a “lei islâmica”.
Contudo, muito poucos na imprensa ocidental sentiram-se convencidos e passaram os próximos dias a tentar contestá-lo. Não era essa a narrativa imediatamente esperada ou mesmo desejada, de modo que a imprensa preferiu enfileirar uma série de comentaristas para contradizê-lo. Supostos especialistas nos estúdios de televisão saíram do debate sobre o covid-19 para opinar sobre a conquista do Talibã e o que ela significa para as mulheres afegãs. A análise é, de modo bastante abrangente, bastante rasa e precária.
Os direitos das mulheres, disseram, estão condenados sob um regime do Talibã. Quase em uníssono, previram o retorno do casamento compulsório, casos de estupro e escravidão sexual, além da perda de direitos à educação e a imposição de um sistema de servitude imposto a meninas a partir dos 12 anos de idade. Alguns poucos sugeriram vínculos entre as atrocidades do Estado Islâmico (Daesh) com o grupo Talibã — quem sabe, deliberadamente em alguns casos. Mas veja — por que não deixamos que os fatos contraditem essa história lúrida e suas versões dos eventos em curso no Afeganistão?
Caso tais comentaristas soubessem que a degradação das mulheres pelo Daesh é considerada profundamente ofensiva aos valores puritanos do Talibã, não fariam tamanha associação. Não tenho dúvidas ainda de que os elementos remanescentes do Daesh em solo afegão serão logo removidos.
Embora seja indelicado deixar de reconhecer a promoção de algumas mulheres afegãs desde a deposição do Talibã, na maior parte das aldeias e cidades, suas vidas não mudaram tão drasticamente nas últimas duas décadas. A vida ainda era dura; para muitos, miserável.
Sim, há algumas parlamentares e mulheres ainda mais impressionantes que administram ongs e instituições beneficentes, além de médicas, jornalistas e acadêmicas. No geral, porém, são uma ínfima minoria — parte de uma elite privilegiada e bastante articulada perante as câmeras.
Todas previram um desastre de ensino, com o eventual fechamento de escolas para meninas sob o Talibã, apesar de garantias reiteradas por parte do movimento de que a educação representa de fato um direito às mulheres. A decisão de muitas delas, incluindo feministas, de alinhar-se à ocupação dos Estados Unidos — sinto — é um golpe ao feminismo. Durante os últimos vinte anos de violência, incontáveis homens foram torturados, sequestrados e assassinados. Todos eram filhos, pais e maridos de mulheres desesperadas que não esquecem ou perdoam as ações das forças ocupantes. Portanto, em resposta às lágrimas de crocodilos derramadas por governos na Europa e América do Norte sobre as mulheres afegãs, digo isso: ofereça a elas assentos livres nas aeronaves que partem de Cabul, junto daqueles que trabalharam para a ocupação. Aqueles que desejem reconstruir o país, que fiquem.
É um pressuposto comum que, caso você seja uma mulher afegã, então deve ser contrária ao Talibã por definição — somente homens poderiam apoiá-lo. Trata-se, no entanto, de uma visão reducionista e bastante equivocada. Houve sim mulheres satisfeitas com o Talibã entre quem depôs o governo corrupto instituído no país pelas forças ocidentais. Muitos aqui podem não entender, mas suas opiniões não eram mais relevantes — quem sabe, jamais foram.
Desde a retirada do apoio americano ao Talibã, em 1996, um processo de demonização avançou alimentado pela islamofobia. Quando os marqueteiros de Washington concluíram sua obra maquiavélica sobre o Talibã, o grupo tornou-se rotineiramente retratado como selvagens primitivos, misóginos e mesmo pedófilos.
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O efeito dominó foi transformar as mulheres afegãs em vítimas que precisavam ser resgatadas por homens com complexo de herói. A demonização prosseguiu dessa maneira até 11 de setembro de 2001. Feministas ocidentais como eu foram alvejadas em particular. Eu mesmo me tornei personagem dessa narrativa tóxica. Pouco surpreende que colegas jornalistas logo escreveram meu obituário quando emergiram notícias de que fui capturada pelo Talibã durante uma viagem de trabalho. É verdade que eu não esperava sobreviver à minha prisão em setembro de 2001. Apenas após ser libertada sob base humanitária, com tempo para refletir sobre minha experiência, é que percebi que o movimento foi falsamente representado no Ocidente como uma horda brutal de monstros maledicentes.
De volta a Londres, tentei debater minhas análises com algumas colegas feministas, mas prontamente fui rejeitada. Verdadeiramente gentis como são, muitas mulheres ainda estão em negação de que foram alimentadas com propagandas anti-Talibã por anos e anos. Sabem muito bem que, caso admitissem sua adesão a um monte de mentiras, significaria que deram apoio irrestrito a bombardeios repletos de testosterona dos Estados Unidos e seus aliados, representados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), contra civis, além de um governo notoriamente corrupto instalado em Cabul.
Apenas o tempo dirá se os líderes do Talibã manterão sua palavra e permitirão a graduação e o trabalho adequado às mulheres afegãs. Caso não o façam, jamais serão perdoados por aquelas que optaram por ficar e trabalhar pelo país. Muito disso depende se seus detratores ocidentais permitirão ou não o Talibã a governar, para início de conversa. Sabemos que sanções e calúnias tornaram quase impossível ao Hamas gerir a Palestina ocupada após sua vitória em eleições justas, em 2006. Apelos por sanções contra o Talibã já ressoaram ao longo da semana; o movimento tem de trabalhar para provar seu equívoco. Quem sabe, jamais saberemos se o Talibã poderá governar de modo eficiente e justo, pelo simples fato de que o Ocidente pode impedi-lo sequer de tentar.
Como vimos, um aspecto majoritário da oposição ao grupo gira em torno dos direitos das mulheres, como se tudo fosse uma trajetória ascendente sob sucessivos governos instituídos por Washington e seus aliados. Então, qual é a verdade sobre as tais liberdades duramente conquistadas pelas mulheres afegãs, por exemplo, pelo governo mais recente de Ashraf Ghani? Poderá Ghani refletir com orgulho sobre o que fez ao país enfim entocado nos Emirados Árabes Unidos, para onde fugiu — segundo dizem — com centenas de milhões de dólares? Infelizmente, a realidade contrapõe a propaganda.
Segundo a Organização Central de Estatísticas, cerca de 84% das mulheres afegãs ainda são analfabetas e apenas 2% têm acesso à educação superior. Quando políticos ocidentais tentam justificar os vinte anos de ocupação e guerra no Afeganistão ao alegar avanços obtidos às mulheres afegãs, sobretudo ensino e trabalho, não é inteiramente verdade.
De acordo com a Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão (AIHRC), cerca de três mil cidadãos afegãos se suicidam todos os anos. A estimativa é provavelmente bastante subnotificada, dado que muitas famílias receiam sequer admitir o problema, um dos muitos tabus no país conservador. Em âmbito global, há mais suicídios masculinos do que femininos, mas não é o caso no Afeganistão, onde 80% dos casos abrangem as mulheres. A província de Herat comporta mais da metade das vítimas. Os números de fato refletem uma leitura trágica e revelam a situação ainda lúgubre das mulheres e meninas afegãs.
Ao passo que o Afeganistão tornou-se mais e mais instável no último ano, estima-se que dez milhões de crianças deixaram de comparecer regularmente à escola, além de 3.7 milhões de crianças privadas por completo de qualquer educação. Esta é a realidade em campo que pode ser verificada facilmente, caso o jornalista deseje analisar de fato a retórica anti-Talibã.
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Após duas décadas de suposta construção nacional e reabertura de instituições de ensino, os programas de combate ao analfabetismo falharam em vasta maioria. O êxito educacional parece ainda reservado a poucos — e não há desculpa para isso. Se alguém como Robert Mugabe — falecido presidente do Zimbábue, também difamado pelo Ocidente — pôde efetivamente gerir enormes investimentos em educação e alcançar o mais alto índice de alfabetização entre mulheres na África, por que o Afeganistão ocupado foi então incapaz de repetir o feito? Os vinte anos de Mugabe no poder alcançaram 89% de alfabetização entre a população adulta do país, segundo informações do Banco Mundial. Trata-se de um caso de sucesso. O programa afegão, por outro lado, é um tremendo desastre.
De fato, o único êxito creditado a Washington e seus aliados é que um pequeno número de privilegiados afegãos aproveitaram a chance ocasional para enriquecer a si mesmos. Não por acaso, o governo de Ghani é considerado um dos mais corruptos do planeta. Até a semana passada, não obstante, era vastamente acobertado por analistas neoliberais — além do próprio poder de fogo — de agentes ocidentais, que promoveram o mito de melhora extraordinária nos direitos e na educação das mulheres no Afeganistão.
A narrativa neoliberal deixa de lado a violência de gênero, incluindo assassinato, assédio e estupro coletivo ao longo desses anos — todos crimes projetados ao Talibã por seus detratores. Muitos ataques são varridos para debaixo do tapete por familiares, algo bastante conveniente a essa narrativa de “acima e avante”. Nas áreas rurais do Afeganistão, há pouquíssimos serviços disponíveis às mulheres que buscam escapar da violência doméstica, dado que tamanha violência, nestes casos em particular, não conquista as manchetes.
Quantos de nós sabemos do caso aterrador de Lal Bibi, por exemplo? A menina de 17 anos foi espancada e torturada por seu sogro e marido. Mesmo quando a polícia prendeu ambos, comandantes tribais garantiram sua soltura e o permitiram fugir a uma área controlada pelo Talibã. O movimento agora tem a oportunidade de conceder justiça a Lal Bibi e deve fazê-lo a fim de cumprir suas promessas sobre os direitos das mulheres.
No último ano, organizações de direitos humanos reforçaram seus apelos pelo fim dos chamados testes de virgindade, procedimentos abusivos que são ainda rotineiros no Afeganistão, mesmo embora não possuam validade científica. Onde estava a indignação ocidental sobre tais intervenções em particular? O código penal afegão requer uma ordem judicial e consentimento das mulheres para os testes, mas mais de 90% dos casos ela são ignoradas — a despeito das leis outorgadas pelo próprio Ghani.
A grande imprensa não adotou este escândalo? Por quê afinal? Certamente escreverão, debaterão e transmitirão os relatos, caso o Talibã seja imprudente o bastante para revogar a legislação do estatuto. Como observou um analista, a grande mídia parece avançar em uma “enorme cruzada” para incitar um levante contra o Talibã — “Essa gente não liga para o Afeganistão, querem apenas vingança pela derrota ocidental”.
Para além da superfície, a verdade é que os parâmetros estabelecidos para os direitos das mulheres no Afeganistão são miseravelmente baixos. O sistema de ensino está em frangalhos e as taxas de alfabetização não refletem os alardes sobre as supostas conquistas da ocupação dos Estados Unidos, Reino Unido e aliados da OTAN.
Os Estados Unidos gastaram US$2 trilhões para alimentar sua guerra no Afeganistão e cerca de US$90 bilhões para estabilizar, armar e treinar uma força militar e policial de 300 mil homens, que meramente derreteu diante da chegada do Talibã a Cabul. Outros bilhões foram dispensados ao exército americano, empresas de segurança privada e fabricantes de armas que engordaram vastamente por meio de um fluxo aparentemente infindável de capital. Desvio e desperdício de dinheiro público da pior espécie.
Por que tais somas imensas não foram investidas na saúde, bem-estar e educação do povo afegão? Afinal, é disso que se trata construir uma nação. Ao contrário, dólares do contribuinte alimentaram uma guerra sem fim, o que diz tudo que precisamos saber sobre as intenções do então presidente americano George W. Bush em 2001 — isto é vingança pelos atentados de 11 de setembro (com os quais o Talibã não tinha qualquer ligação), a qualquer custo. Washington tratou o Afeganistão de forma abominável, como um verdadeiro playground militar, e sua população sofreu por consequência. O presidente Joe Biden agora abandona os afegãos, ao alegar que são ingratos e não querem lutar pelo seu próprio país.
É revigorante ouvir dos líderes do Talibã promessas de paz, direitos das mulheres e educação. Agora é preciso transformá-las em ações e mostrar aos longevos ocupantes como é que se faz. Os afegãos sofreram por décadas de interferência colonial estrangeira, violência de líderes tribais, fome generalizada, guerra civil, o próprio Talibã na década de 1990 e a ocupação dos Estados Unidos e seus agentes por procuração, desde 2001.
As mulheres afegãs realmente acreditam que voltarão a um estado medieval de ignorância? Não imagino. Todas elas sofreram privações imponderáveis nas guerras e nos campos de refugiados — seja sob o comunismo soviético ou sob a “guerra ao terror” de George W. Bush. O Talibã é sem dúvida misógino — porém, caso cumpra sua palavra, oferece agora ao país, em geral, e às mulheres, em particular, um horizonte de esperança, paz e estabilidade, tudo que lhes falta há mais de cinco décadas. Dê uma chance à paz, dizia John Lennon. O povo do Afeganistão não merece nada menos do que isso.
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