Catar emerge como protagonista no Afeganistão, após retirada dos EUA

O Catar exerceu um enorme papel nos esforços dos Estados Unidos para evacuar dezenas de milhares de pessoas do Afeganistão. Agora, o pequeno estado do Golfo é requisitado para ajudar a formular os próximos passos para o país, devido a seus laços tanto com Washington quanto com o Talibã, que assumiu o poder em Cabul.

Neste contexto, o Catar estará entre pesos-pesados durante uma conferência global, conduzida por vídeo e convocada pelo Secretário de Estado dos Estados Unidos Antony Blinken, enquanto Washington conclui sua retirada do território afegão e o Talibã consolida sua captura do país. O encontro incluirá também Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido, Turquia, União Europeia e Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Espera-se que o Catar seja abordado pelo Talibã para conceder assistência técnica em âmbito civil no aeroporto internacional de Cabul, uma vez concluída a retirada militar americana, prevista para essa terça-feira (31). Não obstante, as autoridades em Doha ainda não comentaram tais rumores.

Enquanto isso, agências das Nações Unidas pedem apoio do Catar para manter os canais de assistência humanitária com destino ao Afeganistão.

O papel do Catar era, de certa forma, inesperado. O país — que compartilha fronteiras por terra com a Arábia Saudita e um vasto campo de gás natural no Golfo Persa com o Irã — deveria servir apenas como passagem a algumas milhares de pessoas evacuadas, por alguns meses.

LEIA: Se as ações do Talibã servem de referência, como ficam os EUA no Iraque?

Após a surpreendente tomada de Cabul pelo Talibã, em 15 de agosto, contudo, os Estados Unidos procuraram o Catar para ajudar a conduzir evacuações de dezenas de milhares de pessoas, em meio a um estado de desespero e caos no aeroporto de Cabul.

No fim, quase 40% dos evacuados foram transferidos via Catar e as lideranças do país árabe conquistaram, subsequentemente, diversos elogios de Washington e seus aliados. Redes internacionais de imprensa também recorreram ao Catar para resgatar suas equipes. No sábado (28), os Estados Unidos afirmaram que 113.500 pessoas foram evacuadas do Afeganistão desde 14 de agosto. Enquanto isso, o Catar reportou que mais de 43 mil pessoas passaram por seu território ao longo do processo.

O papel catariano nas evacuações reflete a posição do país como sede da maior base militar dos Estados Unidos no Oriente Médio, mas também sua decisão de abrigar a liderança exilada do Talibã, anos atrás — o que conquistou certa influência no grupo militante. O Catar também recebeu as negociações de paz entre Talibã e Washington no último ano.

Lolwa al-Khater, assessora da chancelaria catariana, reconheceu os ganhos políticos de seu país nas últimas semanas, mas contestou eventuais alegações de que tais esforços foram meramente estratégicos. “Se alguém pressupõe tratar-se apenas de ganhos políticos, pode acreditar, há formas muito mais fáceis de fazer relações públicas do que pôr em risco nosso pessoal em campo, passar noites em claro pelas últimas duas semanas e gastar nosso tempo para resgatar cada criança e cada mulher grávida”, afirmou à Associated Press.

Para alguns dos esforços de resgate mais sensíveis no Afeganistão, o Catar conduziu sua operação com poucas centenas de tropas e suas próprias aeronaves militares. Doha coordenou a evacuação de um internato de meninas, uma equipe de robótica inteiramente feminina e jornalistas a serviço da imprensa internacional, entre outros grupos considerados de risco. O embaixador catariano acompanhou ônibus e mais ônibus através de uma série de postos de controle do Talibã em Cabul e outros postos militares ocidentais no perímetro do aeroporto, onde multidões reuniam-se desesperadas para fugir do país.

Al-Khater observou ainda que o Catar garantiu salvo-conduto ao aeroporto de Cabul para cerca de três mil pessoas e evacuou ao menos 1.500 pessoas, sob apelos de organizações internacionais. Segundo seu relato, forças catarianas desfrutaram de uma posição única devido à sua capacidade de dialogar com as diversas partes em campo, além de sua disposição para escoltar as pessoas ao longo da capital sob controle do Talibã.

LEIA: Os afegãos venceram o invasor

“O que muitas pessoas não percebem é que tamanha viagem não é apenas um telefonema ao grupo Talibã”, acrescentou al-Khater. “Temos postos de controle instalados por Estados Unidos, Reino Unido, OTAN, Turquia etc … e temos de manobrar e equilibrar tudo isso com todas as variáveis e fatores da conjuntura afegã”.

O Talibã prometeu anistia a todos aqueles que permanecerem no Afeganistão. Ainda assim, muitos reafirmam não confiar no movimento armado e buscam fugir desesperadamente — sobretudo ativistas da sociedade civil que trabalharam junto das tropas ocidentais e mulheres receosas de perder seus poucos direitos duramente conquistados. Além disso, outros grupos combatentes impõem cada vez mais novas ameaças. Na última semana, um atentado suicida reivindicado pela organização terrorista Estado Islâmico (Daesh) matou mais de 180 pessoas nos arredores do aeroporto internacional de Cabul.

O processo de evacuação liderado por Washington, não obstante, é ainda maculado por erros de cálculo e evidente desorganização, o que estendeu-se à base al-Udeid no Catar. Os hangares do local estavam tão lotados que os Estados Unidos tiveram de suspender os voos de Cabul por horas e horas, justamente no período de pico das evacuações, em 20 de agosto. Países vizinhos — como Bahrein e Emirados Árabes Unidos — aceitaram milhares de evacuados, a fim de aliviar pressão sobre a base americana. Contudo, em al-Udeid, famílias afegãs tiveram de aguardar em espaços quentes, úmidos e mal ventilados no meio do deserto. Um vídeo compartilhado pelo The Washington Post registrou centenas de evacuados em um desses hangares, com apenas um lavabo disponível e pessoas dormindo no chão.

O Catar construiu um hospital de campo emergencial, abrigos adicionais e banheiros químicos para ajudar a conter a demanda. Além dos itens distribuídos pelo exército americano e doações de entidades beneficentes locais, as tropas catarianas entregaram cerca de 50 mil refeições por dia. A companhia Qatar Airways também providenciou dez aeronaves para transportar os evacuados da capital Doha a outros países.

Em torno de 20 mil evacuados permanecem no Catar — alguns esperam prosseguir viagem em questão de semanas, outros em meses, enquanto aguardam um novo destino para suas vidas. Sete mulheres afegãs deram à luz desde sua chegada em solo catariano.

Todavia, o Catar absorve apenas um pequeno número dos refugiados afegãos — entre eles, um grupo de meninas contempladas com bolsas de estudo no país árabe, a fim de concluir sua formação. Doha também abriga alguns evacuados em apartamentos mobiliados construídos para a Copa do Mundo de Futebol FIFA de 2022.

LEIA: Afeganistão, enfim livre do jugo imperial norte-americano

A nação rica em petróleo repousa sobre um pequeno território costeiro com pouco mais de 300 mil cidadãos nativos, onde a enorme maioria da população — de um total de 2.7 milhões de pessoas — são residentes estrangeiros com visto temporário de trabalho.

Segundo a Casa Branca, o presidente Joe Biden expressou por telefonema sua gratidão pessoal ao Emir do Catar Tamim bin Hamad al-Thani e observou que a operação internacional liderada por Washington jamais seria possível sem o apoio do estado árabe, que facilitou efetivamente a transferência de milhares de pessoas todos os dias.

É justamente o tipo de publicidade positiva que milhões de dólares gastos pelos regimes árabes do Golfo — em lobby e relações públicas — podem pouco a pouco garantir.

Publicado originalmente em 30 de agosto pela rede Associated Press.

Sair da versão mobile