A Palestina está representada no 48º. Salão Internacional de Humor de Piracicaba, que abriu suas portas virtual e presencialmente no dia 7 de setembro e segue até 3 de outubro próximo. Os trabalhos do cartunista Fadi Abou Hassan (FadiToOn) estão entre os 308 selecionados para a mostra entre 2.076 enviados por 349 artistas de 49 países.
Seus desenhos constam do seleto grupo nas categorias cartum e charge. Na primeira, sua arte retrata que ante a “censura esmagadora”, a liberdade de expressão encontra seu caminho como resistência; na segunda, a tragédia mundial com a pandemia de Covid-19.
Reconhecido internacionalmente e premiado, o tema de seu cartum poderia simbolizar os próprios desafios de Fadi Abou Hassan enquanto artista. Vivendo como refugiado na Síria e tendo despertado a ira do ditador Bashar al-Assad por expressar em seu trabalho crítica mordaz ao regime, ele chegou a ser preso em 2009 por 80 dias, quando enfrentou tortura e maus tratos. O risco a sua vida e de outros cartunistas se intensificou após o início da revolução síria em 2011. Entre esse ano e 2012, foi convocado pela inteligência militar em Damasco para interrogatórios diversas vezes, enfrentando ameaças e proibição de viajar. A Rede de Cidades Internacionais de Refugiados (Icorn, na sigla em inglês) e a Rede Internacional de Direitos dos Cartunistas coordenaram esforços para retirá-lo clandestinamente do país. Desde 2013, Fadi Abou Hassan está exilado na Noruega.
Segundo afirmou em vídeo, o regime sírio enviou um recado claro aos cartunistas ao quebrar as mãos do colega sírio Ali Ferzat, que hoje vive no exílio no Kuwait. Além desse ataque bárbaro, desapareceu nos porões da ditadura de Assad, no ano de 2012, o também cartunista sírio Akram Raslan, cuja morte sob tortura foi confirmada somente em 2015. Fadi, que trabalhou com ele, publicou em suas redes sociais uma homenagem, nomeando Raslan “um dos mais corajosos cartunistas da Síria”.
Salão contra ditadura
Com sua arte a serviço das lutas contra a tirania, é altamente simbólico que Fadi Abou Hassan represente a Palestina na mostra. O Salão Internacional do Humor tem sua origem atrelada à resistência contra a ditadura militar no Brasil. Foi fundado no ano de 1974, segundo consta em seu portal, “como uma iniciativa corajosa (alguns diriam ‘afrontosa’) de um grupo de artistas, jornalistas e intelectuais piracicabanos que se reuniam em um bar chamado Café do Bule”. Entre os que apoiaram a iniciativa, os cartunistas do jornal “O Pasquim”, que, diante da censura e perseguições da ditadura, passaram a adotar o humor indireto e metafórico na luta contra a repressão.
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Desde sua criação, o salão sempre busca selecionar trabalhos que reflitam os acontecimentos no País e no mundo. Depois de amargar um ano sem exposição em função da pandemia, nesta edição obviamente também reflete este momento dramático de crises sanitária, política e socioeconômica. Sempre com o humor ácido característico.
Em entrevista ao portal alemão Deutsche Welle, o sociólogo Anton Zijderveld afirmou: “Brincar com os valores rígidos de um sistema é como brincar com fogo.” Por transmitir mensagem acessível a todos e levar ao questionamento, como continuou, “o humor é tão severamente punido em um regime [ditatorial]. Para evitar o fortalecimento da oposição”.
Legado de Naji al-Ali
A despeito disso, ameaças, prisões, torturas, exílio e mesmo assassinatos têm fracassado em barrar a disseminação e popularização de ideias expressas por meio de traços carregados pelo sarcasmo. A arte tem o poder de se eternizar.
Exemplo é o personagem Handala, do cartunista palestino Naji al-Ali, assassinado aos 41 anos de idade, em Londres, no ano de 1987. Handala simboliza um menino refugiado de dez anos, que sempre aparece de costas e nunca crescerá, até retornar a sua terra natal. Tornou-se algo como sua assinatura, através do qual denunciava o imperialismo/sionismo, bem como os regimes e burguesia árabes, inimigos da causa palestina. Segundo o portal Palestinian Journeys, foi descrito por Naji al-Ali como “uma espécie de bússola para mim, que sempre aponta para a Palestina”.
Fadi Abou Hassan tem homenageado Naji al-Ali constantemente por ocasião do aniversário de sua morte. Em 2017, publicou um cartum intitulado “Não o mataram… Naji!!”, em que retrata Handala com um tiro na nuca olhando para um corpo coberto com uma kuffiah palestina. O personagem sobrevive nas habitações, corações e mentes palestinos, das terras ocupadas à diáspora e campos de refugiados.
Esse legado está presente nas obras de Fadi Abou Hassan e de outros cartunistas palestinos e árabes. Pequena amostra dessa rica herança pode agora ser vista no Salão Internacional do Humor de Piracicaba. E nos lembrar mais uma vez dos ensinamentos do saudoso ator brasileiro Paulo Gustavo, uma das vítimas da política genocida de Bolsonaro em relação à pandemia de Covid-19, em meio a ameaças golpistas no Brasil: “Rir é um ato de resistência.” Para os palestinos, como todas as ações e expressões culturais, uma resistência que se traduz em existência.
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