Neste terceiro e último artigo da série, observamos o jogo geopolítico dentro da Ásia. Ou seja, como as projeções e disputas de poder intra-asiáticas desenvolvem os conflitos do Sul da Ásia (Hindustão X Paquistão), da Ásia Central (na tentativa de estabilização por parte da China) e também da potência paquistanesa na plenitude de sua política externa. Afirmamos estas três variáveis sem negar o processo absolutamente autóctone e nativo do Talibã através de sua força armada de hegemonia da guerrilha Pashtun. Esta etnia organizada política e religiosamente é a única com verticalidade necessária para em menos de meio século, derrotarem duas superpotências, a extinta União Soviética e os EUA liderando a OTAN.
Comecemos por compreender a importância do Afeganistão para os países islâmicos e como este território representa um rechaço contra a presença ocidental. Em 1919 a condição de vassalagem foi rompida com o Império Britânico, em um grau de altivez semelhante ao da Turquia com a sua guerra de independência. Não havia projeto de território turco e nem curdo no famígera acordo Sykes Picot Sazanov e após o de Sèvres, os impérios atlânticos queriam dilacerar o que veio a ser a Turquia. O Irã é outro exemplo de altivez, primeiro na revolução dos Qajars, após com a manobra da inteligência inglesa ao emplacar um coronel cossaco como autoproclamado Shah e por fim, ao derrotar em 1979 o regime golpista do filho do oficial de cavalaria.
É neste conjunto de referências, com a nefasta presença inglesa e ainda assim uma notável influência britânica na política, que nasce o Paquistão como um projeto de potência islâmica no Sul da Ásia. A derrota do Império Mogul (1526-1857) para a Companhia Britânica das Índias Orientais e a marinha vitoriana marca o início da ruptura de povos islamizados para com punjabis sikhs, hindus e tâmeis. O Paquistão do século XX traz essa variável estruturante, aquela que no cálculo incide ou determina as demais. A guerra de partilha de 1947 do Punjab e Caxemira (1ª guerra), a segunda guerra da Caxemira (1965), a de 1971, com a perda do Paquistão Oriental, se tornando o Bangladesh e a guerra de Kargil de 1999, marcam as estruturas burocrático-administrativas do país. Trata-se de um país sério, potência nuclear, aliado estratégico da China e cujo centro decisório, a capital Islamabad, foi inaugurada em 1963 como cidade planejada.
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O empenho das forças armadas paquistanesas na guerra de libertação contra a invasão soviética também a uma lógica geopolítica asiática. A China era aliada do Paquistão desde antes da 1ª Guerra da Caxemira, incluindo intercâmbio de armamentos. A Índia era cliente de armas da União Soviética. No conflito político que se inicia em 1958 e culmina na guerra de fronteiras de 1969, Beijing se posiciona ao lado da resistência mujahideen e da política externa paquistanesa, enquanto Nova Déli se manteve aliada da URSS até sua dissolução. Após a derrota de 1971, a elite militar do Paquistão se preparou para operar em maior escala, e copiou o Império Britânico quando da fundação do HSBC e entrou para o jogo das altas finanças através do hoje extinto Bank of Credit and Commerce International (BCCI, 1972-1991). A instituição que chegou a ser o maior banco privado do mundo era o braço financeiro também da rede do ISI (Inter-Services Intelligence), a mais poderosa agência paquistanesa cujo cargo de diretor-geral passa pelo Primeiro Ministro do país.
Seria um erro considerar que tanto as redes Haqqani como a Yaqoob são satélites, em especial a primeira. Essas subdivisões da força hegemônica pashtun-afegã têm vontade própria e certa autonomia logística. Mas, ao mesmo tempo, estaríamos cometendo uma “trama narrativa” ao negar a participação do ISI no apoio da 2ª Guerra do Afeganistão assim como no período anterior ao 1º Emirado (1996-2001), o da guerra civil de todos contra todos. Na subdivisão interna paquistanesa do Território Federal das Áreas Tribais (iniciada em 1947, mas com status ampliado em 1970, até sua extinção em 2018), o idioma pashtun é língua franca e o ISI teve toda a autonomia operacional necessária.
Tampouco podemos afirmar que todas as unidades pashtuns e islamistas são leais a Islamabad, considerando o conflito do Waziristão e sua possível incidência tanto sobre a Caxemira como no apoio estratégico do Turquestão Leste. O interesse da China é evidente, tanto na estabilização do Paquistão como no compromisso do Afeganistão do 2º emirado em não permitir um apoio logístico para os combatentes contra a ocupação de Xinjiang, a província chinesa de origem túrquica e islâmica. Sem levar essa variável em conta, simplesmente não há como explicar a posição asiática de reconhecimento e certo condicionamento do novo governo de Cabul.
A tensão tem esfera regional em conflitos legítimos embora perigosamente internacionalizados. A Caxemira está sob a ocupação da Índia e é motivo de tensão permanente além da militarização da por parte do governo indiano de Jammu e Kashmir. Na região de Aksai, no território entregue pelo Paquistão e anexo a geleira de Siachen, está a presença da China. Gilgit-Balstistan traz a presença militar paquistanesa. Os três países são dotados de arsenal nucleare e se envolvem em contenciosos de fronteira. Para tornar o cenário ainda mais complexo, China e Afeganistão fazem a fronteira conexa, no Himalaia, e a província de Xinjiang é fronteiriça.
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Considerando que a China enviou voluntários e agentes uigures para enfrentar a invasão soviética na 1ª Guerra do Afeganistão e que o sentimento autônomo e separatista do Turquestão Leste é permanente, Beijing precisa garantir a segurança na sua fronteira sino-afegã assim como não permitir a evolução de um cenário complexo com Xinjiang, Waziristão e Caxemira sob a influência salafista. É um paradoxo típico nos conflitos reais, as lutas podem ser legítimas, mas os instrumentos empregados nem tanto.
O Paquistão é um país aliado estratégico da China, com acordos securitários e território econômico complementar. Os benefícios advindos da Organização pela Cooperação de Xangai podem ser a saída viável para o Afeganistão, caso o Talibã se comprometa a uma legislação minimamente inclusiva e tolerante (não se tornando um pária internacional) e também proíba a presença de redes e serviços de inteligência filiados ao Daesh e suas ramificações regionais. Essa segunda variável é determinante para o futuro do novo governo de Cabul, sendo a primeira negociável, dentro do cinismo típico do Sistema Internacional.
Infelizmente o conteúdo desse texto, apesar de não se tratar de novidade alguma, é simplesmente oculto no noticiário internacional transmitido no Brasil. Sem entrarmos no jogo de poder da Ásia, é impossível entender o Afeganistão moderno e suas relações exteriores. Trata-se de uma aberração intelectual, tão repugnante como é a prisão ilegal de Guantánamo para o direito internacional. Nenhuma mirada asiática é trazida pelos “analistas” das empresas de mídia. Como se costuma dizer, a primeira vítima de uma guerra, e das coberturas das guerras também, é a verdade dos fatos e o rigor analítico. Esperamos que com esta série aqui concluída, tenhamos contribuído para superar a lacuna da desinformação.
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