Desde 1º. de outubro o Estado de Israel removeu da “lista vermelha” os últimos três países com restrições de viagens em função do alto risco de contágio pelo novo coronavírus, entre os quais o Brasil. A liberação para trânsito entre os destinos passou a vigorar a partir desta segunda-feira (4/10). Antes, dependia de análise e autorização de um “comitê de exceção”. Mas para muitos, sobretudo de origem árabe e palestina, a fronteira se manterá um lugar inóspito: humilhação, pressão psicológica e discriminação seguirão sendo triste e ignorada rotina.
A estes, o determinante continuará a ser o racismo e o apartheid, não a pandemia ou o passaporte brasileiro. E aos milhões de refugiados à espera do retorno às suas terras, as portas seguem cerradas na contínua Nakba – catástrofe com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada.
Conforme o Poder 360, “as mudanças devem beneficiar principalmente brasileiros residentes em Israel, que estavam insatisfeitos com as barreiras para visitar familiares no Brasil”. O portal RFI revelou que grupo destes chegou a criar, em 9 de agosto último, um abaixo-assinado com o título: “Queremos ver nossos pais e avós”, em que falava de “injustiça” e protestava “veementemente contra a situação absurda”, que representaria “discriminação injustificada, com base no país de origem” e violação a “direito básico”.
Chama atenção o argumento, uma vez que essa é a regra para milhões de palestinos e seus descendentes espalhados pelo mundo. Também querem ver seus familiares que estão submetidos a ocupação desumana, abraçá-los, ter seus direitos básicos respeitados. Querem justiça e liberdade. Não mais dor, lágrimas e sangue derramado.
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Mas não há abaixo-assinado do gênero contra essa “discriminação injustificada, com base no país de origem”, pelo fim do regime de apartheid e colonização ou pelo direito fundamental de retorno dos refugiados às suas terras. O texto escrito pelos brasileiros é uma peça que revela a ideologia sionista que despreza milhões enquanto se levanta em seu individualismo apoiado em privilégios materiais e alienação.
Uma ideologia igualmente explicitada em protesto israelense no ano de 2014 pelos direitos dos animais que reuniu 15 mil pessoas, enquanto bombas caíam sobre as cabeças de palestinos indistintamente em Gaza mais uma vez. Os palestinos não só não são humanos para estes. São nada. Contra isso, é preciso ecoar o recado dos oprimidos e explorados: vidas palestinas importam.
Relatos da fronteira
Essas notícias geram indignação e trazem lembranças amargas, como a dos pais palestinos de um amigo nascido no Brasil que, já idosos, quiseram realizar o sonho de morrer em sua terra. Sua entrada foi negada, o que levou ao infarto do pai e à tristeza de falecerem no exílio forçado.
As histórias são muitas, como de jovens palestinos-brasileiros obrigados a se despir e se submeter a revista vexatória na fronteira. Ou dos muitos sujeitos a interrogatórios que se traduzem em ameaça, intimidação e tortura psicológica. Dos que aguardam horas e horas intermináveis sem saber se lhes será permitido entrar ou não. Dos que vivem em Gaza, sob cerco sionista desumano há 14 anos, e não podem sair ou entrar, mesmo que sua vida dependa disso. Das dezenas de mães que são impedidas internamente, na Cisjordânia, de atravessar um check point para ter seus filhos em um hospital.
Por duas vezes não pude entrar na Palestina ocupada, ao que o passaporte brasileiro foi sumariamente ignorado. O que prevaleceu foi a origem – que me é motivo de orgulho –, como revelam as perguntas feitas ao guichê da fronteira do apartheid: “Qual o nome de seu pai? Onde ele nasceu?”. Meu único tio ainda vivo naquela ocasião, irmão do meu pai palestino, era idoso e estava doente. Faleceu oito meses depois da última vez em que atravessei a ponte para alcançar a Cisjordânia, em março de 2015, para depois ser obrigada a fazer o caminho de volta.
Não pude abraçá-lo, como reclamavam seu desejo os brasileiros em abaixo-assinado. Em 2015, acompanhava missão humanitária em que metade era jornalista. Foram barrados apenas eu e mais um também de origem árabe. A justificativa foi “ameaça à segurança” – sempre na lógica de criminalizar quem levanta a bandeira legítima da resistência à ocupação ilegal e imoral. Recado que serve de chantagem sobretudo para os brasileiros de origem árabe e palestina: silenciem sobre a injustiça ou não poderão rever seus familiares.
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A impunidade para que Israel siga cometendo seus crimes contra a humanidade lhe é garantida pelo mundo e apoiada em milhões de dólares concedidos pelo imperialismo estadunidense. Violação ao “direito básico” para ninguém botar defeito. Mas não mereceu uma linha quanto mais abaixo-assinado dos brasileiros que queriam abraçar seus familiares agora.
Não são dois anos de pandemia, são mais de 73 anos. Quantos palestinos morrem na diáspora sonhando com a Palestina? Quantos morrem em campos de refugiados olhando em direção a sua terra, sem poder retornar? A poesia do palestino Mourid Barghouti em “Eu vi Ramallah”, ao descrever seu sentimento ao passar pela ponte Allenby depois de 30 anos de exílio forçado, resume a dor e a indignação coletivas: “Como pode esse pedaço escuro de madeira distanciar uma comunidade inteira de seus sonhos? Como pode proibir gerações inteiras de tomarem café em casas que eram delas? Como conseguiu nos lançar em tamanha paciência e em toda essa morte?”
Em resposta, resiliência e muita resistência. Resistência que mantém viva a chama da liberdade. Este é nosso legado. É a certeza de que, como a música brasileira de protesto composta por Chico Buarque e entoada pelos brasileiros em 2015 na fronteira do apartheid, em suas quatro horas de espera, “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”.
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