Na última quarta-feira (6), a agência Reuters reportou comentários de um porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos de que não há qualquer plano para “normalizar ou aprimorar” as relações diplomáticas com o regime sírio de Bashar al-Assad. O mesmo oficial alegou na ocasião que Washington tampouco quer encorajar outros países a fazê-lo.
Segundo o porta-voz, isso se deve às “atrocidades perpetradas pelo regime sobre o povo sírio [de modo que] Assad não ganhou qualquer legitimidade sob nossa perspectiva e não há qualquer proposta de normalizar relações com seu governo, neste momento”.
Podemos pressupor de tais declarações que, caso as atrocidades chegassem ao fim, assim também seria para a animosidade entre Damasco e Washington. Outros países, no entanto, não demonstram a mesma timidez. Um número razoável de estados já restituiu laços com Assad, incluindo Sudão, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Hungria, Arábia Saudita, Egito, Líbano, Jordânia, Bulgária, Grécia, Chipre e Áustria. Todos eles são aliados dos Estados Unidos e é certamente inconcebível que tenham tomado tamanha decisão de política externa sem a devida ciência e consentimento da Casa Branca.
Em agosto, James Jeffrey, representante especial do ex-presidente Donald Trump para a Síria, observou que os Estados Unidos de Joe Biden mantêm seu silêncio sobre os avanços para reintegrar o regime sírio ao sistema internacional. “O que não estamos fazendo é desencorajar os emiradenses e outros a abrir suas embaixadas para Assad”, enfatizou o diplomata.
Como se não bastasse, recentemente, oficiais jordanianos, egípcios e libaneses reuniram-se com suas contrapartes sírias para debater a retomada do projeto de Gasoduto Árabe, que busca conectar o Sinai egípcio ao sul da Turquia. Aparentemente, nenhum desses países teme as sanções americanas sob o chamado Ato Caesar — promulgado contra estados, empresas e indivíduos com negócios substancias com a Síria, após denúncias contundentes de tortura e execução de presos políticos nas mãos do regime.
LEIA: Interpol é criticada por suspender as “medidas corretivas” sobre a Síria aplicadas após 2011
Segundo Jeffrey — ainda oficial do governo americano —, os árabes receberam garantias de que Washington não decretará sanções caso negociem com a Síria ou trabalhem para restaurar seu assento na Liga Árabe. Tais salvaguardas já estavam evidentes pela aprovação tácita demonstrada pelo silêncio de Biden e seu governo. “Em algum grau, todos cederam porque ninguém em Washington está os pressionando para manter a exclusão de Assad, muito menos a pressão diplomática e econômica contra seu regime”, explicou Jeffrey.
No mesmo contexto, a embaixadora americana em Beirute, Dorothy Shea, confirmou à emissora de televisão Al-Arabiya, seis semanas atrás, que Washington trabalhava com Egito e Jordânia para melhorar as condições econômicas no Líbano — em franca referência ao Gasoduto Árabe, que beneficia efetivamente a Síria.
Shea observou manter contato com o Departamento de Tesouro dos Estados Unidos e a Casa Branca, além do Banco Mundial, para solucionar a questão e contornar o Ato Caesar. “Há vontade para fazê-lo, mas há questões logísticas pendentes também”, acrescentou.
É fato que alguns países na região e além jamais romperam relações com Assad, apesar de suas atrocidades. Os países do Magreb, além de Iraque e Omã, nunca se afastaram da Síria, que preservou ainda seu lugar de fala na Assembleia Geral das Nações Unidas, onde seus diplomatas puderam reunir-se com representantes de todo o mundo.
Maher Sharafiddine, jornalista sírio no exílio, argumentou à rede de televisão Al Jazeera que os esforços vigentes para reintegrar a Síria às comunidades árabe e internacional receberam anuência dos Estados Unidos. De Detroit, observou, por exemplo, que os árabes que mantiveram ou restabeleceram laços com o regime de Assad são todos aliados de Washington.
“A política reticente de Washington sobre o regime sírio, mesmo quando este empregou armas químicas, convenceu o mundo árabe de que os Estados Unidos não têm qualquer desejo de destituir Assad, apesar de sua mobilização inicial contra ele”, explicou Ziyad Majid, professor de Estudos do Oriente Médio na Universidade Americana em Paris. O estudioso reiterou que os governos árabes e ocidentais toleraram o resgate russo ao regime, por meio do chamado processo de Astana. “Isso abriu caminho para retomada de contato com Damasco por alguns estados árabes, encorajados pelo Kremlin”.
Levando tudo isso em consideração, por que devemos acreditar que a Casa Branca opera de algum modo para destituir o ditador da Síria? Por seu histórico aterrador de violações de direitos humanos e autoritarismo? De fato, um presidente como este favoreceu — e pode favorecer ainda mais — a posição dos Estados Unidos.
LEIA: Os EUA confirmam assassinato de alto líder da Al-Qaeda na Síria
É preciso admitir que, não importa o que faça Assad, seu histórico de direitos humanos jamais será de acordo com os supostos parâmetros ocidentais. Contudo, não será o único chefe de estado criminoso e autoritário com apoio de Washington no Oriente Médio — ou em qualquer outro lugar. Todos os líderes árabes possuem a mesma mácula, incluindo reis e príncipes dos estados do Golfo. Apesar de alegações contrárias, os Estados Unidos não são tão seletivos sobre suas amizades e certamente não demandam “democracia” quando seus interesses tendem ao outro lado. Washington não apenas apoia o ditador egípcio Abdel Fattah el-Sisi, por exemplo, como manteve seu silêncio sobre o golpe militar que depôs o primeiro presidente democraticamente eleito do país, em meados de 2013. A Casa Branca sequer deu-se ao trabalho de usar a palavra “golpe”, ao comentar os subsequentes massacres no Egito.
O relacionamento com Ancara concede outro exemplo de hipocrisia. Estados Unidos e OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) precisam da Turquia por suas instalações e capacidades militares, mas isso jamais impediu a Casa Branca de conduzir uma “guerra secreta” contra o governo eleito. A política turca é descrita como “autoritária”, embora mantenha um sistema presidencial similar aos Estados Unidos. Dois pesos e duas medidas?
De fato, sanções americanas e europeias, assim como seu “boicote diplomático”, sem qualquer impacto em campo na Síria, pretendiam apenas encobrir uma enorme falta de vontade em combater as violações e atrocidades de Assad contra o povo da Síria. A intenção sempre foi impedir que um regime democrático emergisse em Damasco, pois poderia representar maior ameaça à ocupação israelense do que o patético “eixo do mal”, do qual Assad supostamente faz parte — com zero ameaça efetiva ou histórica à presença de Israel.
Os Estados Unidos querem que os países árabes em torno de Israel, seu principal aliado regional, permaneçam fracos e divididos — sobretudo, dependentes de Washington. É por isso que simplesmente não é possível acreditar que a Casa Branca não concedeu luz verde a seus aliados para restabelecer vínculos com a ditadura de Assad, não importa o que diga o Departamento de Estado.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.