As pessoas no barco lotado gritavam enquanto a guarda costeira líbia os empurrava até que temessem que ele afundasse. Eles embarcaram e balançaram seus bastões e armas tanto para homens, quanto mulheres e crianças. Mohammed percebeu que havia sido enganado, e o contrabandista que havia providenciado a passagem da Líbia para a Europa havia mentido: Os guardas costeiros não iam ajudar, pois arrastavam o navio de volta para a Líbia devastada pela guerra, aclamando a vitória: “Itália não, não! Líbia cem por cento!”. Mal sabia ele, o pior ainda estava por vir.
Mohammed fugiu da Síria em busca de uma vida melhor. Aterrorizado com a perspectiva de ser recrutado para o exército de Assad.
Ouvindo que a rota para a Europa via Líbia estava aberta, ele partiu imediatamente, primeiro fugindo para o Líbano via Homs, e depois para a Líbia. A exploração de uma situação desesperada começou imediatamente. “Era claro que os responsáveis por nós eram gangues; qualquer serviço por dinheiro, corretores em todos os lugares”, lembra-se ele. “As pessoas estavam usando nossa situação para ganhar mais dinheiro para tudo”.
Mohammed pagou grandes quantias de dinheiro para ter um passaporte emitido, depois para voar do Líbano para o aeroporto de Benina, na Líbia. Na chegada, o grupo contrabandeado foi tratado como animais. “Eles nos alinharam e pulverizaram líquido antibacteriano sobre nós. Eles nos trataram terrivelmente, como animais. Eles nos obrigaram a sentar no chão por três horas, mesmo aqueles que queriam ir aos banheiros”, diz Mohammed. “Eles nos forçaram a ir até as paredes com varas nas mãos e disseram: ‘usem as paredes como banheiro’”.
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Por mais quinhentos dólares, Mohammed foi levado de Benghazi para Trípoli. Ao chegar, ele foi apresentado a um contrabandista chamado Walid e permaneceu em um alojamento semelhante a uma prisão. Após vinte dias, Walid decidiu que era hora de começar a perigosa viagem através do Mediterrâneo até a Europa. “Cada um pagou US $1.500 a ele, e ele nos enganou e disse que organizou tudo com a guarda costeira, e que se algum risco ou perigo nos ocorresse enquanto estivessemos no barco, ele nos levaria de volta para fora da embarcação”, explica Mohammed.
Eles esperaram numa praia, tremendo à uma da manhã, esperando para sair; qualquer segundo pensamento foi rapidamente abatido por Walid. “Eles nos forçaram a entrar no barco enquanto nos espancavam. Ele prometeu que nosso barco chegaria às águas regionais e entraria em águas italianas. Não sabíamos os detalhes nem para onde estávamos indo”, recorda Mohammed. Eles estavam otimistas de que chegariam ao seu destino, mas logo perceberam que sua positividade era horrivelmente mal orientada.
“Estávamos tremendo de medo”, diz Mohammed. “Sentimos tanto medo quando nos prenderam no mar, foi a pior sensação que já senti em minha vida. Eles estavam nos assustando de propósito. Eles também pararam cerca de quatro ou cinco outros barcos e os prenderam também”.
“Um dos barcos era de africanos; um dos africanos pulou no mar para se matar. Tentamos ajudá-lo e procurá-lo, mas não conseguimos encontrá-lo nem ajudá-lo”.
“O barco começou a viagem e então a guarda costeira cortou nosso caminho, pensamos que eles nos ajudariam como Walid nos prometeu, mas eles começaram a nos ameaçar e empurraram nosso barco ao ponto de afundar”, diz Mohammed.
Ao arrastarem o barco de volta para o Zawiya da Líbia, ele não tinha ideia de que o pior ainda estava por vir. “No porto de Zawiya, os oficiais do porto disseram ‘dê-nos o dinheiro que você tem, e não o levaremos para a prisão’, eles prometeram que aqueles que pagassem iriam ao banheiro e depois os levariam para o centro da cidade”, diz ele. Mas os guardas portuários não foram fiéis à sua palavra. Eles levaram o grupo sem um tostão para a prisão. “Na prisão, eles usaram a política de intimidação, nos despojaram e nos bateram, ficamos tão assustados, eles nos deixaram com outros 300 prisioneiros africanos”.
O grupo não comeu durante dias, e eles foram privados de comida como ‘castigo’. “Ficamos com fome. Eles nos colocaram nas paredes em filas. Pensamos que eles nos executariam”. As condições eram esquálidas. Os banheiros da prisão não tinham água e estavam cheios de lixo humano, o cheiro insuportável, explica ele. As celas da prisão estavam vazias, sem camas ou comodidades básicas.
Após cerca de quatro dias sem comida adequada, os guardas finalmente alimentaram os prisioneiros exaustos por volta das três da manhã, derramando água sobre aqueles que mal conseguiam manter os olhos abertos, para despertá-los. A comida veio a um preço mais alto. Enquanto Mohammed e os outros comiam, os guardas os espancaram. “Se reagíssemos à dor, eles voltariam a bater. Eles estavam entregando comida e chutando-a com as pernas, ele me bateu com um cano de metal nas costas, eu estava em silêncio para não ser atingido novamente”.
As punições coletivas eram comuns. Se os guardas considerassem um migrante como tendo se comportado mal, então todos seriam punidos. “Às vezes, se alguém causasse um problema, seríamos todos proibidos de comer por um dia, que era uma refeição por dia”, diz ele. “Eles puniam a todos por uma pessoa. Nós, sírios, não causamos nenhum problema e nunca tentamos fugir”, recorda Mohammed. “Algerianos e africanos tentaram escapar, eles nos puniram a todos e nos trancaram em uma sala, quatrocentas pessoas trancadas de pé, estávamos prestes a sufocar pela falta de ar”, continua ele. “Tudo que pensávamos enquanto estávamos trancados na prisão era simplesmente sermos livres para beber água boa, para nos salvarmos. Estamos todos perdidos. Nosso maior sonho na prisão era um pão de forma”.
Os guardas foram para cima dos presos sírios, dizendo que ninguém se importaria se eles morressem aqui ou na Síria, e lhes disseram que não deveriam se sentir importantes. Os refugiados que tentaram escapar seriam fuzilados e seus corpos sangrando seriam arrastados de volta para o centro de detenção para serem expostos como uma lição para qualquer um que se atrevesse a tentar fugir.
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Os doentes eram ignorados, pois não havia hospitais ou médicos disponíveis.
Após longas negociações, Mohammed finalmente conseguiu assegurar sua liberdade a um custo de US$1.000. A transação foi essencialmente um resgate. “Eles chamaram nossas famílias e lhes disseram: ‘seu filho está nesta situação terrível; se você quiser salvá-lo, envie este dinheiro’, e as famílias estavam preocupadas com seus entes queridos, então eles transferiram o dinheiro”.
“Eu estava preocupado que ele continuasse a explorar minha família e lhes pedisse mais de uma vez; eu lhes disse ao telefone para apagar seu número e nunca mais atender seu telefonema depois que enviassem o pagamento”.
Segundo a Anistia Internacional, somente em dois meses em 2018, 2.600 refugiados que tentavam fazer a travessia para a Europa foram levados e transferidos para condições esquálidas, onde enfrentaram tortura e extorsão.
Os contrabandistas de pessoas podem cobrar cerca de US$3.000 por viagem de barco, e mais se mulheres e crianças estiverem envolvidas. De acordo com um relatório do Monitor do Oriente Médio em 2017, é possível que um contrabandista ganhe cerca de US$1 milhão em uma viagem.
Mohammed está agora preso na Líbia. Ele não sabe para onde ir, nem o que fazer.
“Nunca fomos tratados como humanos desde que começamos nossa viagem. Estamos em um ponto em que não podemos voltar e não podemos avançar; o que devemos fazer? Eu não tenho ideia”.
“Para mim, preferiria voltar para a Síria do que ficar aqui. Mesmo as prisões do regime de Assad são menos brutais do que as que vimos aqui”.
Em 2019, a Human Rights Watch confirmou estas alegações. Criticou fortemente os esforços da União Europeia para evitar que barcos saíssem da Líbia, pagando para que a guarda costeira líbia interceptasse barcos de refugiados em direção à Europa.
O consulado líbio não respondeu com comentários quando abordado pelo MEMO, mas as autoridades já disseram anteriormente que as alegações comprovadas de tortura ou extorsão eram “um ato de um indivíduo e não uma prática sistemática”.