A multidão pró-Israel nas redes sociais se apressou em atacar a premiada romancista irlandesa Sally Rooney, assim que ela declarou que tinha “optado por não vender … os direitos de tradução de seu romance de sucesso, ‘Belo mundo, onde você está’ a uma editora com sede em Israel”.
Como era de se esperar, as acusações centraram-se na difamação padrão utilizada por Israel e seus apoiadores contra qualquer pessoa que ouse criticar Israel e demonstrar solidariedade com o povo palestino oprimido.
A ação louvável de Rooney não foi de forma alguma ‘racista’ ou ‘antissemita’. Pelo contrário, foi tomada como uma demonstração de apoio ao Movimento Palestino de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), cuja defesa se situa dentro dos discursos políticos anticoloniais e antirracistas.
A própria Rooney deixou claro que sua decisão de não publicar com a Editora Modan, que trabalha em estreita colaboração com o governo israelense, é motivada por valores éticos.
“Simplesmente não sinto que seria correto, nas atuais circunstâncias, aceitar um novo contrato com uma empresa israelense que não se distancia publicamente do apartheid e não apóia os direitos do povo palestino garantidos pelas Nações Unidas”, disse ela em uma declaração em 12 de outubro.
Na verdade, a contestação de Rooney não é com o idioma em si, pois ela declarou que “os direitos de tradução em hebraico para meu novo romance ainda estão disponíveis, e se eu conseguir encontrar uma maneira de vender esses direitos que esteja de acordo com as diretrizes de boicote institucional do movimento BDS, terei muito prazer e orgulho em fazê-lo”.
LEIA: Gestos vazios ou mudanças substanciais? Sobre o Prêmio Nobel de Literatura e seus descontentamentos
Rooney não é a primeira intelectual a tomar uma posição ética contra qualquer forma de normalização cultural com instituições israelenses, especialmente aquelas que apóiam e se beneficiam diretamente da ocupação militar israelense na Palestina. Sua posição é consistente com posturas similares tomadas por outros intelectuais, músicos, artistas, autores e cientistas. A lista em constante expansão inclui Roger Waters, Alice Walker e o falecido Stephen Hawking.
O movimento BDS deixou bem claro que, nas palavras do co-fundador do movimento, Omar Barghouti, “o boicote palestino visa apenas as instituições, devido a sua cumplicidade arraigada no planejamento, justificação, branqueamento ou qualquer outra forma de perpetuação das violações de Israel do direito internacional e dos direitos palestinos”.
É claro que alguns ainda não estão convencidos. Aqueles críticos do movimento BDS confundem intencionalmente o antissemitismo com uma forma legítima de expressão política, que visa enfraquecer e isolar as próprias infra-estruturas econômicas, políticas e culturais do racismo e do apartheid. O fato de muitos judeus antissionistas serem partidários e defensores do movimento não é suficiente para fazê-los reconsiderar sua lógica falaciosa.
Uma das denúncias mais “polidas” de Rooney, que apareceu na revista Jewish Forward, foi escrita por Gitit Levy-Paz. A lógica da autora é, no mínimo, confusa. Levy-Paz acusou Rooney de que, ao recusar-se a permitir que seu romance fosse traduzido para o hebraico, ela excluiu “um grupo de leitores por causa de sua identidade nacional”.
Embora a escritora da Forward seja culpada de confundir ética política e nacionalidade, ela não é a única. Os sionistas israelenses fazem isso, naturalmente, onde a ideologia sionista e a religião judaica – e, neste caso, a língua – são frequentemente intercambiáveis. Como resultado, a definição de “antissemitismo” foi estendida para incluir o antissionismo – embora o sionismo seja uma construção ideológica moderna. Como Israel se define como um Estado judeu e sionista, qualquer forma de crítica às políticas israelenses é frequentemente representada como se fosse uma forma de antissemitismo.
Um dos aspectos mais interessantes desta conversa sobre a língua é que a língua hebraica tem sido usada pelo Estado de Israel desde sua criação em 1948 como a língua da opressão. Na mente dos palestinos, em qualquer lugar da Palestina, o hebraico raramente é a língua usada para expressar cultura, literatura, coexistência social e outras. Em vez disso, todas as portarias militares emitidas pelo exército israelense, incluindo encerramentos e demolições de casas, muito menos os procedimentos das audiências dos tribunais militares, e até mesmo os cantos racistas antipalestinos nos estádios de futebol, são comunicados em hebraico. Os palestinos podem então ser desculpados se não considerarem a língua hebraica moderna como uma língua de inclusão, ou mesmo de comunicação inócua, cotidiana.
Estas percepções não são apenas o resultado de experiências cotidianas. Sucessivos governos israelenses aprovaram inúmeras legislações ao longo dos anos para promover o hebraico em detrimento do árabe. Por mais de sete décadas, a limpeza étnica do povo palestino tem sido associada ao apagamento de sua cultura e de sua língua, desde a hebraicização de nomes árabes históricos de cidades, aldeias e ruas, até a demolição de antigos cemitérios palestinos, olivais, mesquitas e igrejas, o etnocídio israelense é um item de destaque na agenda política israelense.
LEIA: Colonialismo e solidariedade definem a decisiva batalha Israel-Palestina na África
A Lei do Estado Nacional Israelense de 2018, que elevou o hebraico como língua oficial de Israel e rebaixou o árabe para um “status especial”, foi o culminar de muitos anos de uma campanha israelense incansável e centralizada, cujo único objetivo é dominar os palestinos, não apenas politicamente, mas também culturalmente.
Tudo isso em mente, a hipocrisia dos porta-vozes de Israel é inconfundível. Eles acolhem, ou pelo menos permanecem em silêncio, quando Israel tenta demolir e enterrar a cultura e a língua palestina, mas reclamam quando um autor respeitado ou um artista bem considerado tenta, ainda que simbolicamente, demonstrar solidariedade com o povo palestino oprimido e ocupado.
O movimento de boicote palestino está consciente de sua missão moralmente orientada, portanto, nunca poderá duplicar as táticas do governo israelense e das instituições oficiais. O BDS visa pressionar Israel, lembrando aos povos de todo o mundo de sua responsabilidade moral para com os palestinos.
O BDS não visa os israelenses como indivíduos e, sob nenhuma circunstância, visa indivíduos judeus porque eles são judeus, ou a língua hebraica, como tal. Israel, por outro lado, continua a visar os palestinos como um povo, desvaloriza sua língua, desmantela suas instituições e destrói sistematicamente sua cultura. Isso é corretamente chamado de genocídio cultural, e é nossa responsabilidade moral detê-lo.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a política editorial do Middle East Monitor.