“Contem ao mundo o que viram, porque a comunidade internacional nos abandonou.” Este é o pedido que os palestinos sob ocupação fazem a todos que os visitam em sua terra. Os 15 autores do livro “Palestina: Vozes da resistência e memórias de viajantes” (Editora Sundermann) atenderam esse apelo.
A publicação, organizada por duas das autoras – a historiadora e professora associada da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Ana Maria Marques, e a jornalista e doutora em História, Laís Costa –, traz mosaico de impressões brasileiras sobre a Palestina ocupada.
Além do assombro com a barbárie da colonização sionista, são apresentados pelos olhos dos viajantes cheiros e sabores da terra, cultura e generosidade de um bravo povo resistente e resiliente. Relatos incluem visita a campo de refugiados, histórias terríveis, mas também a dignidade daqueles que, apesar da realidade brutal, expressam sua força e confiança no amanhã em sorrisos, afetos e mesmo humor. Nos anexos, registros da jornada em imagens.
Os 15 autores realizaram sua viagem pela Cisjordânia, Palestina ocupada em 1967, entre 2015 e 2019, guiados por Sandra Guimarães, do blog Papacapim. Militante do veganismo e antiespecismo, ela assina o prefácio, no qual apresenta as razões que resultaram na publicação: “A partir do momento em que tomamos consciência do que está acontecendo na Palestina, compartilhar o que vimos e vivemos por lá se torna um dever. Este livro é uma tentativa coletiva de cumprir esse dever, levar a mensagem de justiça e resistência do povo palestino a mais pessoas e honrar o pedido que tantas vezes nos foi feito pelas palestinas e palestinos durante os tours: ‘Quando voltar pro seu país, conte às pessoas de lá o que está acontecendo conosco’.”
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Além de cumprir essa missão, a obra traz também narrativas de palestinos e palestinas e entrevistas com eles, as “vozes da resistência” indicadas no título. A estes e aos outros milhões que vivem na diáspora ou em meio a contínua limpeza étnica sionista e apartheid institucionalizado, os autores pedem licença para compartilhar suas memórias e histórias daquela terra.
Reconhecem ainda, como escrevem na introdução, o assombro com o desconhecimento em relação a um destino que antes de se chegar lá “permanece velado, apenas imaginado”. Para a maioria dos 15 autores, provenientes de diversas partes do Brasil, era a primeira viagem ao Oriente Médio. A Palestina era idealizada, um “enigma, revelado a cada rua ou cidade visitada”, a cada encontro com seu povo. O aprendizado é objeto de textos que compõem a coletânea, regados à deliciosa culinária e hospitalidade palestinas.
Conhecimento transformador
O livro integra a coleção Al Tadamoun al-Umami (Solidariedade Internacional) da Editora Sundermann, que visa trazer ao leitor de língua portuguesa publicações sobre o mundo árabe como um todo e Palestina em especial na perspectiva da solidariedade internacional. Contribui, assim, para preencher lacuna importante em um mercado predominantemente eurocêntrico, não raro norteado por visão orientalista – ou seja, de um “Oriente” inventado, atrasado e bárbaro, que se contrapõe ao “Ocidente civilizado”, outra representação, que serve à dominação imperialista e à colonização. Por essa lente, a Palestina não é apenas invisibilizada e silenciada, mas também deturpada.
“Vozes da resistência e memórias de viajantes” comunga desse projeto que desconstrói distorções e busca levar conhecimento de modo a transformar a realidade. Exemplo é o empenho em apresentar o protagonismo feminino na Palestina sob ocupação a partir da percepção, para alguns autores, de que sua própria visão era absolutamente deturpada até tomarem contato com as mulheres palestinas. “Viajei com uma venda ocidental em meus olhos e voltei livre de visões estereotipadas ao conhecer as verdadeiras fortalezas palestinas, envoltas em véus ou não”, declara na publicação Giselle Ponciano, uma das autoras.
Lançado em 27 de agosto último e mais recentemente durante a quinta edição do Salão do Livro Político, a obra revela ainda outra marca comum entre os que visitam a terra ocupada: o sentimento de que, após estada nesse local, como afirmou Laís ao lançamento, “a Palestina nunca mais sai de dentro de você”. Marca sua vida, nas palavras de Ana Maria Marques, como “um divisor de águas: antes e depois”.
Esses encantamento e afeto estão presentes a cada página, a cada memória. Talvez inconscientemente, os autores vão, pouco a pouco, dando vazão ao que se ouve há tempos em mobilizações em solidariedade ao povo que enfrenta contínua Nakba – catástrofe com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada –, mas não se dobra e serve de inspiração a todos os lutadores e lutadoras por causas justas: “Somos todos palestinos.”
“Vozes da resistência e memórias de viajantes” é leitura fluida que desvela uma história dramática. Mas se ergue acima do horror da ocupação, assim como os que inspiram essas memórias. É, dessa forma, também a transmissão do grito de resistência, que desafia muros e checkpoints. A cada aspecto da vida dos palestinos expresso na obra, a certeza de que a terra sabe que seu destino é liberdade e justiça. Vale a pena ler. Depois, contem ao mundo.
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